Cultura

VIDA DE GORDO: Jeffinho mira a feijoada de mariscos, p OTTO FREITAS

A beleza brotava das enseadas banhadas pelas águas calmas da baía de Todos os Santos.
Otto Freitas , da redação em Salvador | 25/11/2013 às 09:10
Jeffinho já acorda na segunda pensando no feijão de mariscos de dona Mary
Foto: DIV
Para atender a interesses próprios nos assuntos gastronômicos - um por conta do ofício de escritor especializado, outro pelo simples prazer de comer e conhecer novidades -, Don Franquito e Jeffinho apontaram para breve uma visita a dona Mary, lá pelas bandas de São Thomé de Paripe, com o objetivo de experimentar sua famosa feijoada de mariscos. 

Essa conversa e a proximidade do verão ativaram doces lembranças em Jeffinho; veio à tona sua memória afetiva dos anos em que, ainda na infância e adolescência, veraneou em Periperi e São Thomé de Paripe, área de Salvador conhecida hoje como subúrbio ferroviário (Lobato, Plataforma, Itacaranha, Escada, Praia Grande, Periperi, Coutos, Paripe e São Thomé de Paripe). 

Até os anos 1970, essa região era formada por lugarejos bucólicos, comunidades tradicionais de pescadores e veranistas que aproveitavam a pesca farta e a beleza das praias e enseadas banhadas pelas águas limpas e calmas da baía de Todos os Santos. Só se chegava a esse paraíso de barco, de trem, ou fazendo um longo e demorado arrodeio pela antiga Estrada Velha do Aeroporto, precária e perigosa. 

Jeffinho gostava do trem, curtia a paisagem no caminho da estrada de ferro inaugurada em 1860. Cada viagem era precedida de muita ansiedade e expectativa. A aventura durava 15, 20 minutos, mais ou menos. Jeffinho tinha seus momentos preferidos, como a hora em que se avista a Ribeira e começa a travessia da ponte de metal. É incrível a visão cinematográfica que se tem, com o movimento rápido do trem, das imagens se alternando na estrutura vazada da ponte. Mais adiante, Jeffinho sentia um frio gostoso na barriga, como se estivesse na montanha russa mais alta do mundo, sempre que o trem entrava no túnel de Coutos, de escuridão veloz feito relâmpago.

 Periperi era da classe média remediada; São Thomé abrigava a classe média alta, os mais abastados. Foi em São Thomé - onde a cerca da Base Naval de Aratu divide a beleza e impõe limites - que o farmacêutico Teodoro passou a lua de mel com Dona Flor; na vida real, o ex-governador Roberto Santos mantinha um sítio onde veraneava com a família. 

Meninas lindas eram aquelas galegas brejeiras, que deixavam Jeffinho bobo de paixão adolescente, enquanto dançavam juntinhos, rosto colado, nas matinèes do Periperi e do Flamenguinho, clubes tradicionais que fizeram história com suas festas e shows inesquecíveis.
 
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O Dr. Paulo Gaudenzi, economista, professor de história e especialista em turismo, acha que Salvador cresceu para o lado errado. Deveria ficar de frente para a rica beleza da baía de Todos os Santos, onde a brisa é suave e o mar calmo. Mas, por necessidades estratégicas de defesa, a cidade foi construída e se desenvolveu de cara para o oceano, forçada à incômoda convivência com ventos fortes, a violência do mar e a agressividade da maresia. 

Por conta disso, aquela região tão rica e tão valiosa foi esquecida e abandonada pelos poderes públicos. Com a construção da avenida Suburbana (Afrânio Peixoto), começou a ser ocupada (1970-1980), em sua grande maioria, por moradores das classes populares. Houve um inchaço populacional desordenado, sem qualquer planejamento urbano. 

Hoje, os 16 km da avenida Suburbana (vai da Cidade Baixa até Paripe, acompanhando o entorno da baía de Todos os Santos) abrigam 22 bairros e 25% da população de Salvador. São comunidades populares convivendo com falta de emprego, violência urbana, moradia precária e pobreza. 

Mas a riqueza ambiental, arquitetônica, cultural e histórica dos tempos antigos resiste no que hoje é o subúrbio de Salvador. Em meio às habitações simples ainda sobrevivem casarões e chácaras tradicionais do tempo dos grandes barões de engenho. 

Do jeito que é possível, as comunidades tentam preservar praias, sítios e seu patrimônio cultural. Os heróis da resistência estão em grupos de capoeira e de música, nos terreiros e casas de candomblé, além das águas e das árvores sagradas do Parque de São Bartolomeu. 

Com a ajuda de quem conhece, pode-se descobrir em Plataforma, por exemplo, a preços módicos, o grande prazer de ficar na varanda de Boca de Galinha, petiscando um carapicu frito com cerveja bem gelada, enquanto o trem passa à beira-mar. 

Melhor ainda é comer uma moqueca de aracanguira ao molho de camarão, no restaurante familiar de dona Nem. Depois, é espichar as pernas e ficar de bobeira, em cima na laje, curtindo a vista e a brisa que vêm lá de baixo da baía de Todos os Santos, fazendo as curvas ladeira acima. 

Nem tudo está perdido, afinal.