Cultura

VINGANÇA DE GORDINHA OFENDIDA TEM GOSTO DE CHOCOLATE. P/OTTO FREITAS.

O embate entre duas gordinhas disputando espaço no ônibus lotado.
Otto Freitas ,  Salvador | 01/07/2013 às 08:33
Não é brinquedo para gordinhas achar espaços em ônibus lotado
Foto: DIV

Esta crônica é mais uma colaboração da jornalista Andreia Santana, aquela amiga de Jeffinho que escreve em blogs e em sites de notícia. Na condição de gordinha de raiz, ela fala com autoridade sobre as aventuras e desventuras da mulher gorda. Neste texto, relata a disputa de duas mulheres gordas por um lugar no ônibus lotado. Considerando-se os últimos acontecimentos no país, vem bem a calhar. A seguir, a crônica de Andreia Santana:

“Vou chamá-la de Azeda e em breve vocês entenderão o motivo. Ela entrou no mesmo ônibus em que eu voltava de casa para o trabalho. Início da noite, avenida ACM toda engarrafada, o ônibus lotado e o motorista, sádico, acumulava mais infelizes espremidos feito sardinhas na lata, a cada ponto em que parava. E ainda fingia não ouvir quando os passageiros berravam que não cabia mais ninguém. 

Quando se é uma moça GG, a estratégia para andar de ônibus em Salvador é procurar um canto onde acomodar as gordurinhas e ficar vigilante, em busca do primeiro lugar vago que aparecer. Estava em um canto desses, sossegada, pensando na vida e em se valeria a pena começar uma nova dieta, quando Azeda entrou.

Ela trazia uma maxxi bolsa (para quem não está habituado às denominações fashionistas, maxxi bolsas são aquelas bolsas enormes onde algumas mulheres sem amor à própria coluna carregam o mundo e mais um tanto de quinquilharias úteis e inúteis) e também uma ecobag (as bolsas de lona usadas para carregar compras e assim dispensar os famigerados sacos plásticos que prejudicam o meio ambiente). Ambas atulhadas. 

Notei Azeda porque ela já entrou no ônibus reclamando e enquanto avançava pelo corredor apinhado, desferia golpes de bolsa e sacola nas costas dos demais passageiros. Pensei com os meus botões que a moça estava estressada, provavelmente por um dia cheio de trabalho, por conta do engarrafamento, que tira o humor de qualquer um, e muito provavelmente por estar com fome. Como toda gordinha sempre acho que as pessoas ficam mais mal humoradas quando já passou da hora da próxima refeição e elas estão presas no trânsito infernal.

Azeda veio abrindo caminho a bolsadas e sacoladas até o local onde eu me espremia, imprensada entre um banco e as costas de outros companheiros de infortúnio. Achei que ela iria parar por ali, até porque não havia mais para onde se mover, muito menos avançar. Mas subestimei os maus bofes da criatura. 

Azeda resolveu avançar e, como eu estava no caminho, deu para empurrar minhas costas. Quando viu que não havia como passar, exclamou, sem o menor respeito ou educação: “Esse pessoal gordo quer andar de ônibus e ocupa todo o espaço!” Fingi que não era comigo e continuei plantada na base. Ela bateu no meu ombro: “Chega para lá que eu preciso passar e você não está deixando, senhora!”. Respondi que a culpa não era minha, o ônibus estava apinhado, mas na subida da ladeira da Cruz da Redenção iria descer muita gente e o aperto melhoraria. Ela fez um muxoxo e resmungou: “Se fosse magra dava para eu passar”.

@@@@@@

A essa altura, eu já estava chateada. Primeiro porque não gosto de gente mal educada. E em segundo lugar porque Azeda (e foi aí que mentalmente passei a chamá-la de Azeda) me chamou de gorda! Tudo bem que estou bem acima do peso, sei que sou gorda, mas achei muita ousadia da fulana colocar a culpa do aperto em um ônibus lotado nos meus quilos a mais e na minha incapacidade de rejeitar sobremesa. Suspirei e em pensamentos xinguei Azeda até a décima nona geração. Não verbalizei os desaforos. Gorda, sim. Porém, uma dama, acima de tudo.

Algum deus rechonchudo deve proteger as gordinhas, pois poucos minutos depois, e de fato após o ônibus subir a Cruz da Redenção, desceu uma quantidade enorme de passageiros e um lugar vagou, perto de mim. Um lugarzinho abençoado, para descansar as pernas e as pelanquinhas.
 
Azeda tentou me empurrar para pegar aquele pequeno pedaço de paraíso em forma de assento, mas embora eu seja gorda, agilidade e anos de prática em pegar ônibus cheios em Salvador não me faltam. Ganhei a corrida e sentei. Azeda me fuzilou com os olhos e, despeitada, soltou outro desaforo: “O peso do corpo deve ser cansativo de carregar”. 

Sorri com meus botões e calmamente abri a bolsa, pensando no velho ditado popular segundo o qual a vingança é um prato que se come frio e aos bocadinhos. Havia ganho o primeiro round, ao ignorar os desaforos e deixar que a infeliz passasse atestado de grosseira em um ônibus lotado. Venci também o segundo, ao pegar o lugarzinho vago e deixar Azeda de pé, com sua bolsa e sacola cheias.

O golpe de misericórdia veio com a barra de chocolate sacada de dentro da minha bolsinha básica, em câmera lenta, como se estivesse em uma propaganda da Nestlé. Abri a embalagem com toda a calma, dei uma olhadinha para Azeda e, com um sorrisinho perverso, admito, mordi o chocolate. Levei bem uns dois minutos rolando e saboreando aquele pedacinho de chocolate na língua - de canto de olho, vi Azeda tão vermelha de raiva que pensei que ela teria um piripaque. 

Se olhar matasse, ela teria me fuzilado. Como não mata, dei outra dentada no chocolate e segui viagem, imaginando o que minha mãe teria feito para o jantar”.