Cultura

A boemia das madrugadas tranquilas que já não existe, p OTTO FREITAS

Mas saboroso mesmo era o filé com feijão tropeiro de Jaime, do Ocê que Sabe, no primeiro andar do sobradinho da rua Ruy Barbosa
Otto Freitas , Salvador | 17/06/2013 às 09:33
Maestro Regiinaldo de Xangô é gente da Bahia
Foto: Flickr
   Negão alto e gordo, barbudo, cabelos rastafari, filho de Xangô, o maestro Reginaldo fez a partida cedo demais, aos 60 e poucos anos. A notícia pegou Jeffinho meio reflexivo sobre esse mundo de hoje, que gira rápido demais, apressado, passando por cima do tempo de viver. Quase não há mais boemia, contemplação, nem espaço para coisas belas, como a música do maestro. Os meninos bebem rápido, para se embriagar logo. Não sabem que a alegria só sai da garrafa lentamente.

   Jeffinho viu Reginaldo pela primeira vez tocando trombone na orquestra do maestro Vivaldo Conceição, no Circo Troca de Segredos, em Ondina, na década de 1970. Durante anos o Circo enriqueceu a noite de Salvador. Era simples, havia alegria e convivência gentil. Gente comum e muitos artistas iam ao Troca para dançar, conversar, ouvir boa música, namorar. Podia-se ver Caetano Veloso no palco, ou se bater com ele, de camiseta, short e sandálias, cerveja na mão. 

   Sexta-feira era dia de baile na sede da Guarda Municipal, na Baixa dos Sapateiros, onde se podia dançar a dois com a orquestra do maestro Vivaldo Conceição, Reginaldo no trombone. Como todo boêmio que se preza, Jeffinho sempre foi um gordinho pé de valsa e deslizava com seu par, pelo imenso salão com piso brilhante em madeira de lei. 

   Como disse Dom Franquito, nos seus escritos sobre o maestro Reginaldo, aquele era um tempo em que se podia frequentar a noite desta cidade da Bahia sem os perigos de ser assaltado ou perder o carro para o ladrão – o máximo que podia acontecer era você se esquecer de onde o deixara, por conta dos goles a mais. 

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    Dom Franquito era um dos parceiros mais frequentes de Jeffinho, naquele tempo em que se podia farrear em paz, aproveitando o silencio das estrelas e o frescor da noite. Frequentava-se o Gereré, que nunca fechava, até a hora em que a luz do sol de Amaralina anunciava o dia.  

   Se a farra não tomasse o rumo de Itapuã, para uma peixada no mercado ou uma serenata nas dunas de Abaeté, o Centro antigo era destino certo para Jeffinho e sua turma – além de Dom Franquito, tinha Bunda Podre, o gordo Césio, o Velho Bonfa e Reminho, que adorava um conhaque e preferia beber em pé; as marcas do balcão em suas camisas eram quase perenes, mesmo depois de muitas lavagens.

   Além de bares e botecos, como o Cacique, na praça Castro Alves, o roteiro podia incluir o brega, com passagens eventuais pelo 63, na ladeira da Montanha, e Maria da Vovó, na Gameleira. Para encerrar, o jantar era sagrado, às vezes já com o dia amanhecendo. Podia ser em pontos de feijoada de rua, ou no Tabuleiro da Baiana, na rua Carlos Gomes, onde Faleiro servia a melhor carne do sol da cidade. 

   Mas saboroso mesmo era o filé com feijão tropeiro de Jaime, do Ocê que Sabe, no primeiro andar do sobradinho da rua Ruy Barbosa. Era ponto de encontro, bar e restaurante, onde Antonio servia com o mesmo bom humor, a qualquer hora da madrugada. A mesa de Jeffinho era uma festa, copos sempre cheios, amigos e putas se alternando nas cadeiras em volta. 

   Como Solange, elegante e discreta, e Queijinho de Minas, com sua doçura, fino trato e surpreendente domínio da língua portuguesa. Eram putas que gozavam sem fingir e amavam sem disfarces, em noites sinceras; ou simplesmente ouviam quem só queria falar, entre carinhos e tragos gentis, para felicidade daqueles que se tornaram amigos, amantes ou os dois - e para os quais se tornaram inesquecíveis.

    Um dia ou outro, as farras se estendiam e se findavam no Castelo de Esmeralda, até que o amanhecer chegasse pelos janelões abertos sobre os telhados brilhantes da velha Bahia. Por inúmeras vezes, ainda de madrugada, Jeffinho desceu sem medo pelo silêncio deserto da Ruy Barbosa, até a ladeira da Praça, em busca de um taxi que o levaria para casa - tranquilo e feliz, são e salvo. 

   Tristemente, são demais os perigos das noites de agora, dos assaltos ao trânsito louco, passando pela violência dos bêbados recalcados, que banalizam a vida dos outros e a própria, usando o carro ou armas de fogo. 

   Já não se pode mais praticar a pura e saudável boemia, feita de amigos, boa conversa, música, dança, cachaça e mulheres. Jeffinho e seus amigos boêmios daquele tempo fugiram para casa. Não é a mesma farra, mas é muito mais seguro.