Cultura

NEM todo gordo passa Carnaval no sofá, vendo a folia, p OTTO FREITAS

Jeffinho é do tempo em que se fazia a travessia de navio. Até que, em dezembro de 1972, o ferry boat Agenor Gordilho fez a viagem inaugural do sistema
Otto Freitas , Salvador | 04/02/2013 às 00:05
Gordo gosta de mordomia e não dessa muvuca apertada
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Como se sabe, o Carnaval de Salvador não é festa para gordo, a não ser que tenha cacife para ganhar convite ou grana para comprar um camarote – um de verdade, confortável, e não esse monte de cacete armado que se espalha na avenida, sob as vistas grossas de todos os prefeitos de todos os tempos.

Mas é preciso esclarecer que nem todo gordo fica em casa, fantasiado, bebendo e comendo tudo o que tem direito, vendo a folia pela TV e pulando em volta do sofá, como se o móvel fosse um trio elétrico. Jeffinho e sua turma, por exemplo, sempre fugiam para Itaparica, a ilha de seu avô Anphilophio. 

É pena que hoje não dê mais para fazer isso. Nas últimas décadas, enquanto o litoral norte se tornava polo turístico, Itaparica foi caindo no esquecimento, deteriorando-se com o tempo. O sistema ferry boat, principal meio de transporte de passageiros e veículos para a ilha, acompanhou a decadência. Hoje, 40 anos depois de inaugurado, há menos embarcações fazendo a travessia do que nos primeiros anos de operação, nas décadas de 70/80. 

Jeffinho é do tempo em que se fazia a travessia de navio. Até que, em dezembro de 1972, o ferry boat Agenor Gordilho fez a viagem inaugural do sistema, que substituiu os antigos navios. O jornalista Francisco Ribeiro Neto, respeitado mestre no seu ofício, não abandonava Amoreiras, o seu lugar preferido na ilha. Naquela época, sempre repetia sua queixa: “Não gosto do ferry boat, porque lá o passageiro é o carro. Gente é bagagem!”.

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Foi de ferry boat, portanto, que Jeffinho, junto com amigos e parentes, como o Peixe e o tio Gileno, fez suas viagens para passar vários Carnavais na casa do seu avô, em Itaparica. Ficava perto da área urbana, mas no meio do mato, à beira da praia, arrodeando um enorme sapotizeiro cujos galhos se espalhavam sobre o telhado. 

Não havia eletricidade instalada, nem água encanada. Era luz de candeeiro, banho na fonte e água de beber no porrão e nas moringas de barro que ficavam na janela para manter a bebida fresca. 

Naqueles Carnavais, além de água e café, bebia-se cerveja, pinga e vinho barato. Difícil era arranjar gelo para manter a cerveja no ponto, pois a geladeira a gás não dava conta. Era preciso recorrer à generosidade do pessoal do Grande Hotel. 

De manhã cedo, a tarefa era buscar o peixe fresco para o almoço e fazer a feira verde no mercado de Itaparica. Para aproveitar a viagem, traçava-se um belo prato de mocotó com pirão devidamente guarnecido por boa pinga e molho de pimenta feito na hora. Na volta, era sagrado pegar água mineral na fonte da bica, para encher o porrão e as moringas. 

Aliás, em casa não podia faltar água da bica, remédio de rápida eficácia para curar a ressaca. Faziam-se, normalmente, duas marés por dia - tirando tio Gileno, que só bebia cerveja e sempre garantia suas três marés, contando o dia e a noite. Sempre bem humorado, ele se embriagava e ficava sóbrio de novo com a mesma velocidade, como se nada tivesse acontecido. 

A programação do dia podia incluir praia, pescaria de linha, banho na fonte, almoço no meio da tarde e sesta na rede amarrada entre as mangueiras, dando cabo à primeira maré. Após o cochilo e vários copos da água de Itaparica, a atividade recomeçava, pois à noite podia ter pesca de siri com jereré, carteado apostado a copos de vinho vagabundo e quente e, vez por outra, um jantarzinho chique no único restaurante perto de casa, no Alto do Santo Antônio.

Quarta-feira também era de Cinzas, a volta da ilha era cheia de ressaca e saudade, tristeza e melancolia. E ainda era preciso suportar o desconforto da viagem, o cheiro enjoativo de óleo diesel, o ruído ensurdecedor dos motores daquele ferry boat sujo, lerdo e arcaico. Pelo menos, as barcas não ficavam horas à deriva, com pane nos motores, como acontece hoje, frequentemente. 

Naquele tempo, Jeffinho e seus amigos só ficavam à deriva quando se embriagavam de vinho, de cerveja e da beleza única da ilha, com seu cheiro de mato e maresia, o gosto de manga rosa e caju, tão doces quanto o apanã e as cocadas de dona Da Hora.