Cultura

GORDOS se aventuram na pescaria de arrasto em MUTÁ, por OTTO FREITAS

Depois de umas três horas e quase duas garrafas de pinga, o grupo chegou ao destino final. A pescaria não rendeu muito: menos de 20 siris e cerca de três quilos de camarão
Otto Freitas , da redação em Salvador | 21/01/2013 às 10:02
Mutá fica na contra costa da Ilha de Itaparica
Foto: DIV
Foram inesquecíveis aqueles verões em Mutá (espécie de estrado suspenso, construído acima do chão no meio do mato, onde o caçador fica à espreita da caça). Não se trata aqui da praia do Mutá, em Porto Seguro, no sul da Bahia, ou da ponta do Mutá, em Barra Grande, na baía de Maraú, no baixo sul. Esse Mutá é o povoado do distrito de Pirajuia, município de Jaguaribe, no Recôncavo, contra-costa da ilha de Itaparica, perto de Salinas das Margaridas. 

Naqueles anos 80, esse Mutá era um recanto bucólico, lugar de paz e de silêncio, com um coreto no único arruado ornado de castanheiras - as casas de um lado abriam seus quintais para a praia, de onde soprava uma eterna brisa de maresia.

Cercado de manguezais, esse Mutá ainda é dos pescadores e marisqueiras, que fazem o autêntico samba-de-roda da Bahia, com destaque para o grupo Barlavento, de Davizinho do Mutá, amigo de Milton Nascimento (sempre que podia o cantor e compositor mineiro aparecia para beber dessa fonte de cultura e beleza).

Como era difícil a vida que se levava nos veraneios em Mutá. Todo dia, antes de se iniciarem os serviços etílico-gastronômicos, era de lei uma esticadinha até Pirajuia, perto de Cações, para providências domésticas, como pegar água de gasto e de beber na bica. Nessa hora, depois de um banho refrescante no rio Jacaré, logo se fazia um às com cachaça de folha bem curtida, para limpar a serpentina e abrir o dia. 

Zeca Birro era o dono do bar, na esquina do caminho da praia, onde se bebia rabo-de-galo e cerveja gelada, com tira-gosto de lingüiça de balcão (linguiça artesanal defumada e moqueada no fogo de álcool e farinha seca, ateado sobre o balcão do armazém forrado por uma folha de jornal). Zeca Birro já não está mais aqui, mas em Mutá ele é eterno, virou nome da praça José Dias, única do povoado, construída no lugar do coreto.

A mesa em Mutá era banquete do mar e do manguezal. As marisqueiras traziam na porta, em pratos brancos de metal esmaltado, porções generosas de chumbinho, aratu, siri, carangueijo - tudo fresquinho, catado, limpo e barato. O aratu (caranguejo pequeno, parente menor do caranguejo-uça, o mais conhecido), que ficou raro, era farto e precioso, se prestava a uma variedade de receitas: caldo, moqueca, ensopado, salada, frigideira, sanduiche e o que mais se inventasse. 

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Naquele verão, os irmãos Paulo Cocô e Beto Cuim, amigos de infância e anfitriões de Jeffinho e Naninho em Mutá, aceitaram o convite de Tonho Gato, pescador compenetrado e de confiança, para uma pescaria de camarão com rede de arrasto, durante a madrugada. 

Por volta da meia noite, lá se foram os quatro amigos para uma aventura inédita na vida de todos eles. Tonho Gato levou a própria rede, com cerca de 10 a 15 metros, presa a estacas nas duas extremidades. A rede é arrastada por dois homens, um mais ao fundo, outro à beira-mar. Quem vai ao fundo pega mais peso. Quando a rede se enche, é puxada para a praia, onde se recolhe o resultado daquele trecho. Depois, de volta à água, tudo começa de novo.

 Experiente, Tonho Gato logo se postou na ponta da rede ao fundo, que é para profissional. Os amadores foram se revezando na beira, até se cumprir o trajeto programado, de uns dois ou três quilômetros. O objetivo era chegar à coroa da praia, que estava à vista, com aquela maré. Acima do peso, Paulo Cocô e Naninho ficaram temerosos. Jeffinho e Beto Cuim, obesos, entraram em pânico quando entenderam a pescaria. Mas não dava para voltar atrás.

Depois de umas três horas e quase duas garrafas de pinga, o grupo chegou ao destino final. A pescaria não rendeu muito: menos de 20 siris e cerca de três quilos de camarão. Exaustos, com as coxas cheias de assaduras, ainda assim os gordinhos estavam felizes, pela inusitada experiência e pelo efeito da pinga na mente - sem contar a beleza da noite, silenciosa e iluminada pelo céu estrelado, “onde Deus passa férias”. 
Se todos estavam felizes, então o destino do camarão estava traçado. Tonho Gato preferiu ir para casa, descansar. Os quatro amigos se reuniram em volta de uma mesa no quintal para descascar o camarão, serviço prazerosamente acompanhado por algumas geladas ao mofo, reservadas na velha geladeira a gás. 

Acordaram Dona Maria, cozinheira tão divina que poderia virar personagem de Jorge Amado. Enquanto os meninos catavam o camarão, ela botou o arroz branco para cozinhar, fez o molho lambão de pimenta fresca, e foi preparando os temperos, a pimenta, o leite de coco e o azeite de dendê. A farinha de mandioca, vinda de Nazaré, já estava separada, para o pirão de dendê.

O sol já entrava pela casa, junto com a brisa fresca da manhã, quando Dona Maria colocou o alguidar fervendo sobre a mesa, com aquela moqueca dourada, cuja beleza e perfume quase sublime penetravam as almas dos quatro jovens amigos. Seus olhos brilhavam de contentamento e prazer. 

Eles jamais se esqueceram daquele café da manhã, da emoção que compartilharam, de beber e comer bem pela amizade, pela alegria de viver simplesmente.