Cultura

ARRUMADINHO ZÉ ROLÃO MEXE COM IMAGINAÇÃO DAS GORDINHAS, P OTTO FREITAS

Ituaçu tem vocação natural para o turismo ecológico, com suas cachoeiras, como a bica da Água Preta
Otto Freitas , da redação em Salvador | 04/11/2012 às 22:37
Ituaçu, a terra de Zé Rolão
Foto: DIV

Por apelido, ele é conhecido como Gazula. É um galego típico do sertão: de pouca conversa e humor refinado. Sujeito generoso, solidário, cabra “altamente mais ou menos”, como diria o amigo Giba, lá da Paraíba. Nasceu e se criou em Ituaçu, que fica na Serra Geral, Centro Sul da Bahia, entrada sul da Chapada Diamantina, a uns 500 quilômetros de Salvador. Gazula é apaixonado pela sua terra, fica todo orgulhoso quando alguém fala bem de lá.

Ituaçu tem vocação natural para o turismo ecológico, com suas cachoeiras, como a bica da Água Preta, com o poço do Violão e o do Coração, e a do rio Mato Grosso, que forma pequenas cascatas e os poços das Moças, dos Olhos, do Perau, da Amizade e do Ouro. No turismo religioso, o destaque é a romaria à gruta da Mangabeira, tradição antiga em louvor ao Sagrado Coração de Jesus. Aliás, não há casa em Ituaçu que não ostente na parede da sala um quadro com a imagem do Coração de Jesus.

Depois de fazer a vida na capital, onde estudou, trabalhou e formou família, Gazula voltou correndo para o seu lugar. Aposentado, com os meninos criados, retornou, como o filho pródigo, à Ituaçu do seu coração e do seu destino. Desde então, tornou-se uma espécie de guia turístico informal: sempre faz questão de receber quem chega, improvisando roteiros pelos principais atrativos da cidade.

De vez em quando, Gazula organiza grupos de amigos de Salvador para passar um feriadão ou brincar o famoso São João de Ituaçu, que preserva a tradição do forró pé-de-serra, numa festa democrática em que ricos e pobres dançam o arrasta-pé no mesmo salão. Vem gente de todo canto - do Xixá e do Outro Lado; do Rego Novo, da Várzea e do Tamanduá; da Água Preta, dos Laços e da Cobra.

 

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Certa vez, Gazula levou umas dez pessoas para o São João. Quando a van parou em frente à pousada de Dona Teresa, onde todos se hospedaram, três jovens senhoras ligeiramente acima do peso logo se destacaram pela alegria e pela extravagância da moda plus size. Cheias de trejeitos e gestos largos, exibiam invejável bom humor, falando alto, rindo à toa.

Chegaram nos saltos, mais se pareciam com as irmãs Cajazeiras ao avesso - embora mais jovens. No tempo de Balzac, até meados do século XX, seriam consideradas balzaquianas. Mas como estavam bem acima dos 30 anos, seriam as coroas dos anos 70/80, ou as tias dos dias de hoje.

O fato é que as coroas gordinhas colaram em Gazula, não desgrudaram dele um só momento, principalmente depois que o bem humorado guia turístico sugeriu entusiasmado um programa imperdível: conhecer o arrumadinho de Zé Rolão, o rei do borogodó, tão famoso em Ituaçu quanto Moraes Moreira e Gilberto Gil (Gil nasceu em Salvador, mas passou a infância em Ituaçu).

A primeira noite de farra do grupo aconteceu na praça Gilberto Gil, a principal da cidade, onde fica o bar de Bacharé. Com toda simpatia e simplicidade, ele serve caprichadas geladas ao mofo, uísque honesto e a melhor carne com aipim cozido dos arredores. Gazula aproveitou esse momento para estimular a curiosidade em torno do arrumadinho, envolvendo-o em segredos e mistérios. As coroas enfiaram a cara no uísque on the rocks, provavelmente na intenção de Zé Rolão.

Os dias se passavam entre banhos de cachoeira, visitas à Mangabeira, forró na praça - e nada de Gazula levar o pessoal para comer o tal arrumadinho. A toda hora as gordinhas insistiam ansiosas na cobrança, mas ele sempre disfarçava, inventando desculpas (“hoje não tem”, “Zé Rolão está doente”) - e assim deixava todo mundo ainda mais intrigado.

O boteco de Zé Rolão fica lá pelas bandas do Rego Novo. O arrumadinho é, na verdade, um suculento picadinho de palma (a palma parece um cactos e também ajuda a alimentar o gado e os caprinos na seca do sertão) com nacos de abóbora, cubos de carnes de sol e de porco fritas, farofa d'água com cebola roxa e muito coentro, regados a fios grossos de manteiga de garrafa. Depois de arrumar tudo na travessa de barro, cobre-se com lascas de requeijão. Daí, o prato finalizado vai ao forno, por alguns minutos, para gratinar.

De sacanagem e curtição, Gazula só levou a turma para conhecer o arrumadinho de Zé Rolão no último dia da viagem. Todos adoraram a comida, que é única, exclusiva, uma novidade. As três gordinhas caíram de boca, lambuzaram-se todas.

Dia seguinte, a van partiu bem cedo, levando o grupo de volta a Salvador. Sorridentes como sempre, as coroas não escondiam a satisfação. Não se sabe, no entanto, se as jovens senhoras chegaram a confirmar os predicados apregoados pelo dono do bar no próprio nome. Tampouco se ouviu qualquer uma delas reclamar de propaganda enganosa - nem quanto ao nome próprio do dono, nem quanto ao arrumadinho, que estava definitivamente divino.

 

 

* Otto Freitas (otto.freitas@terra.com.br), 59 anos, é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há quase 40 anos, com bastante experiência em jornais diários, TV e revistas, campanhas políticas e comunicação corporativa.