Cultura

O DIA EM QUE ZOIÃO LEVOU ZAZÁ PARA O BURACO DO VENTO. p OTTO FREITAS

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| 03/09/2012 às 07:15
A Vaquejada de Serrinha é a mais famosa do país e tinha até um "inferninho"
Foto: DIV
 

Zazá era uma ruiva atraente, bunduda, peito pequeno, bocona grande, pernas grossas. Desconfiada, falava pouco, ria muito. Era filha de seu Chico Radiola, um galegão grande, dono de milhares de tarefas de terra cultivada, de sisal e de feijão, na região do Araci, depois de Serrinha, no sertão da Bahia.

Ela se formou enfermeira e trabalhava em Salvador. Quando comprou o primeiro carro, chamou o namorado, Beto Balão, para ir à vaquejada de Serrinha, testar sua nova aquisição e aproveitar a viagem para mostrar o carro à família. Como o namorado não sabia dirigir, Zazá também convidou Zoião, um amigo do casal filho da região, além de motorista cuidadoso e com experiência de estrada.


G
ordinho jeitoso, matreiro, caladão, Zoião era bom de copo, cabra difícil de se embriagar e cair; Beto Balão gostava de uma cascavel (uísque com gelo), mas logo ficava melado, falando besteira, e apagava onde estivesse. Certa vez, bebeu tanto que dormiu na rua e tomou o maior balão apagado (modalidade de roubo enquanto a vítima dorme bebada) no São João de Cachoeira - seu apelido, aliás, vem desse episódio, combinado com o seu excesso de peso.  


Acertada a viagem, lá se foram os dois gordinhos e a ruiva gostosa para a vaquejada de Serrinha e uma esticadinha até o Araci. De manhã cedo, com Zoião ao volante, o fuscão azul turquesa 1976, zerinho, entrou zunindo na BR-324 - Beto Balão ao lado do motorista, Zazá no banco de trás, junto com a bagagem.


Naquele tempo, a vaquejada de Serrinha ainda não tinha a dimensão de mega-evento, com grandes shows de artistas famosos da música sertaneja. Era uma festa regional, de raiz, que acontecia em um fim de semana de setembro (hoje é sempre no feriado da Independência, para ampliar os dias de festa), com as corridas de boi e de cavalo, na pista do curral.


À tarde, a galera jovem, em camisetas e bermudas, se reunia no Inferninho (um grande galpão aberto cuja cobertura com telhas de amianto aquecia ainda mais o calor do sertão), para dançar ao som de música mecânica, beber e paquerar. Era fogo na pista e no ambiente. As moças mais bonitas da região sempre estavam lá. À noite, todo mundo se enfiava em panos e botas para bordejar e se exibir entre as poucas barracas de comida e bebida que se armavam em torno da pista. No sábado, acontecia o baile de gala no clube local, a Associação Cultural Serrinhense.


Naquele ano de 1976 deu-se o caso em questão: durante o dia, enquanto o esperto Zoião bebia poucas e continuadas, com a moderação devida, considerando que a peleja seria longa e demorada, Beto Balão enfiava a cara no uisque, com fé e responsabilidade, e logo caia morto no sofá da sala. Um vexame! Até porque Zazá, uma balzaquiana bem cuidada, também levara o namorado com a intenção de apresentá-lo à família, que andava preocupada com o espichamento de sua solterice.


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Beto Balão seguiu a tradição, cumpriu assim o seu destino, sua sina, apesar das advertências de Zoião: embriagava-se de dia e dormia de noite. Com isso, Zoião se tornou a companhia de Zazá durante a vaquejada, principalmente à noite. Foi assim que, na véspera da viagem de volta, Zoião e Zazá sumiram de repente, sorrateiros, na madrugada fria.


Só quando o dia amanheceu os dois reapareceram do nada, com se nada houvesse acontecido. Quem se arriscava a perguntar ouvia de Zoião a resposta pronta, na ponta da língua, sem titubear: havia levado Zazá para conhecer o buraco do vento. Ela ria com sua inconfundível gargalhada gostosa, cheia de ironia e cinismo.


A viagem de volta foi um silêncio só. Dessa vez, farta e feliz, Zazá viajou ao lado do motorista Zoião, enquanto o namorado Beto Balão dormia sono solto, jogado sobre as bagagens, curando a ressaca no banco de trás.


Nunca mais os três amigos falaram sobre aquela vaquejada. Todo mundo se fingiu de morto. O namoro de Zazá com Beto Balão também não durou muito. 

Em tempo: o buraco do vento existe. Fica entre Serrinha e Araci. É uma caverna no meio do descampado, envolvida em muitas lendas. Quem se atreve a entrar no buraco do vento é sugado até sair do outro lado da terra, no Japão.



* Otto Freitas (otto.freitas@terra.com.br), 59 anos, é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há quase 40 anos, em revistas, jornais e TV; comunicação corporativa e jornalismo digital.