Cultura

VIVER E MORRER SEM PRESSA, OU COMO GORDO MORRE TODO DIA p OTTO FREITAS

vida de gordo
| 12/03/2012 às 07:26
A morte e a morte de Quincas Berro d´Água personagem de Jorge Amado
Foto: DIV
 

Na cena que abre o belíssimo filme do cineasta baiano Sergio Machado, baseado na obra de Jorge Amado, Quincas Berro D'Água desce às profundezas do mar, para seu encontro definitivo com Iemanjá. Em meio às suas reflexões nessa hora derradeira, ele devaneia:

- É a segunda vez que eu morro hoje. Parece mentira, mas pouco importa.


Gordo morre toda hora - e morre de morte matada. Não tem dia em que Jeffinho não encontre quem lhe pergunte por que ainda não fez cirurgia bariátrica, adotou aquela dieta milagrosa ou tomou o remédio que está fazendo sucesso no mercado. Isso tudo entre sussurros e o olhar de mau agouro de quem vê a morte rondando o gordo: "Coitado! Tão jovem...!".


Todo gordo, geralmente, é bem humorado, parece estar sempre de bem com a vida, não anda chorando pitanga. Mas não adianta. A platéia sempre faz terror, com aquele prazer mórbido de todo falso magro invejoso que não tem coragem de ser gordo e de romper com a escravidão das dietas e das academias. Do jeito que olham, parece que o obeso já está com o pé da cova.


Se o gordo vai ao médico, seja qual for a especialidade, a conversa sempre bandeia para a mesma ladainha: "Com esse peso, o senhor pode ter uma morte súbita!". E de quebra o doutor começa a enaltecer as vantagens da cirurgia bariátrica, em um poderoso marketing de consultório. Ora, não precisa pressa para viver e morrer, como dizia um pescador lá de Aratuba.  


Pior é que às vezes o gordo nem tem onde cair morto - ou melhor, tem, mas é apertado. Nem sempre o corpanzil cabe no caixão e este na cova. O enterro de Pingo, um primo longe de Jeffinho que vivia lá em Curitiba, foi um vexame. Ele morreu jovem, no auge do seu metro e noventa e quase 200 quilos. Foi preciso encomendar uma urna especial - maior, para ele caber dentro, e com madeira mais resistente, para agüentar o peso.


Mas esqueceram que o túmulo era de tamanho padrão. Foi um desespero na hora do funeral: tiveram que descer o caixão de lado, devagar, a madeira rangendo na corda esticada, todo mundo tenso, com medo de arrebentar a porra toda e o defunto se despinguelar todo troncho no fundo daquele buraco miserável.

É por essas e outras que Jeffinho já avisou: gordo ou magro, quer ser cremado.


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Com dieta ou sem dieta, malhador ou sedentário, o importante é que gordos e magros vivam do jeito que gostam; que sejam felizes, apesar de todo perigo. Viver é um risco, mas Jeffinho sempre diz que não vai deixar de viver para não morrer.

O importante é aproveitar o tempo, para não se arrepender depois. É cuidar de si - e dos outros também, pois faz bem ao espírito. Mas não se pode desejar que o gordo, de uma hora para outra, abandone os prazeres do mundo e se torne um puritano atleta olímpico. É igual a querer transformar puta em freira. 

Seu  Quiquinho, tio de um amigo de Jeffinho lá da Paraiba, passou a vida na esbórnia, na esculhambação. Tinha convicção, na mais pura fé, de que "só se leva dessa vida o que se bebe, o que se come e o que se brinca". Ele bebia muito e todo dia chegava em casa de porre. A tia Val, mulher dele, sempre repetia, como um mantra:

- Quiquinho, pára de beber, home! Tu acaba morrendo disso...

- Besteira, Val. Eu raramente morro!

Seu  Quiquinho morreu velho - e apenas uma vez.




* Otto Freitas (otto.freitas@terra.com.br) é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há mais de 30 anos, em revistas, jornais e TV; comunicação corporativa e jornalismo digital.