Cultura

ANO COMEÇA PRA VALER NA QUARESMA E GORDOS RETOMAM DIETA.p OTTO FREITAS

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| 27/02/2012 às 08:00
Tempo de penitência e de orações para os gordos
Foto: DIV
  Agora que o Carnaval se foi, o verão passou e o novo ano começa pra valer, então é hora de retomar as promessas feitas na noite do revellion.  

  Jeffinho mesmo já reiniciou suas tentativas-desistências de dieta. Para começo de conversa, como já é tradição, ele e seu amigo Dom Franquito aproveitam a Quaresma, que é tempo de oração, jejum e penitência, para dar um tempo na bebida. Viram abstêmios radicais, só bebem água, sucos e caldo de cana - álcool, nem no carro, pois dá prejuízo.


   Também não comem carne, como recomenda o jejum, e adotam uma dieta magra, à base de peixe, frango, folhas e legumes, cumprindo a penitência que lhes cabe. E assim vão até a Semana Santa, quando estarão prontos para o vinho e a comilança de falso pretexto religioso.


   Nessa quarentena de muita reflexão, Jeffinho volta ao pensamento reincidente do "só é gordo quem quer", conversa fiada de quem é magro ou se aproveita de gordos mal avisados para vender livro e ganhar dinheiro em palestras de auto-ajuda. Todo gordo quer ser magro. Não há um sequer que goste de ser gordo.


   Aquela cascata do "gordo feliz" é outra falácia, papo furado, como se dizia antigamente. O problema é que, como vida de gordo é difícil, requer talento, persistência e criatividade; talvez por disfarce, ou para equilibrar o jogo, ele compensa a desvantagem de ser gordo com simpatia, bom humor e inteligência.


  Gordo tem que se superar a cada segundo, todo dia: é ele contra esse mundo feito para gente magra, branca, bonita e rica. Para a maioria, o gordo não passa de um preguiçoso esfomeado que não tem força de vontade.


   Só agora esse mundo começa a tomar consciência de que obesidade é doença crônica, quase uma epidemia mundial. A ciência trabalha para descobrir as verdadeiras causas e a cura para essa praga infernal. Erro de metabolismo, defeito em um ou mais cromossomos; é gula, falta de educação alimentar, ou deficit de leptina, o hormônio da saciedade, que avisa o cérebro quando chega a hora de parar de comer (o gordo deve tem pouca leptina, o aviso fica lerdo, chega sempre atrasado e ele come demais).


   Assim, enquanto não vem o remédio e a cura, não há para onde fugir: fica gordo, aceita, aprende a conviver com tudo de ruim que isso representa - e faz feito Tim Maia, que chutou o balde, morreu cedo, mas viveu cantando Eu só Quero Chocolate; ou muda de vida - nada de álcool, dieta magra atolada de folha e comida sem gosto, tudo só um bocadinho, e muita malhação, até quase morrer de dor e exaustão.  


   É praticamente vida de monge... Aliás, nem de monge, pois há monastérios espalhados pelo mundo que produzem cervejas fantásticas e vinhos maravilhosos - e as monjas vivem em monastérios separados, não ficam fiscalizando, nem reclamando se o monge bebeu demais.


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  Como já foi dito e repetido, genética não é destino. Determinismo genético não existe. Filho ou neto de gordo não será, necessariamente, gordo para sempre. Mas não é justo que certos magros, que não fazem nem levantamento de agulha, continuem magrinhos, mesmo comendo mais que os gordos e levando uma vida mais sedentária que o mais gordo dos gordos.


   É o caso de Deve Sete, que era da antiga Guarda Civil e patrulhava as noites da Cidade Baixa. Mulato alto, esguio e bem falante, era magro de ruim, como se diz. Ele tinha cadeira cativa na confraria que se formava no calçadão em frente ao Bar de Zé. Era uma espécie de centro de lazer, gastronomia e serviços em torno do bar. À direita ficava a banca de seu Manuel Sapateiro; à esquerda a barbearia de Cardeal e seu Edvaldo. No meio, a banca do dominó, em função permanente.


   Cardeal era um gordo barrigudo de bigodes fartos, mais parecia um mariachi devasso. Sempre que passava uma boazuda, tipo mulher melancia, ele parava o trabalho, batia a tesoura sobre o pente, e se deliciava com aquela visão. Em seguida, exclamava feliz:

   "Isso é que é um pé de trinchete!" - e caia em gargalhada estrondosa. Seu Edvaldo, um crente conversador magrinho e mirrado, vivia a catequisar os clientes. Lá do seu canto balançava a cabeça, reagindo sisudo à atitude do sócio, já que não aprovava esse tipo de comportamento.


   Deve Sete
chegava fazendo a aposta de sempre, com o apoio e participação dos membros da confraria. Ainda no calçadão, de costas e sem olhar para o balcão do Bar de Zé, desafiava: comeria tudo o que houvesse ali na vitrine. Se conseguisse, o pessoal pagava a conta; senão, assumiria as despesas. A galera vibrava e pagava pra ver.

Em menos de meia hora, Deve Sete, que nem sempre tinha o dinheiro do almoço, traçava todo o estoque. Em média, a cada aposta consumia uma dúzia de ovos cozidos, uns quatro ou cinco sanduiches de mortadela no pão cacetinho (às vezes já estavam ali desde a véspera), meia dúzia de sonhos doces, cinco pasteis de carne e oito a dez bananas reais, tudo entremeado por tira-gosto de linguiçinha frita, geralmente dormida. Para ajudar, uns dois litros ou mais de Fanta laranja.


   Deve Sete
jamais pagou uma conta. Ganhou inúmeras apostas, viveu muito e morreu magro, fininho, fininho, como Olivia Palito


  

*Otto Freitas (otto.freitas@terra.com.br) é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há mais de 30 anos, em revistas, jornais e TV, comunicação corporativa e jornalismo digital.