Cultura

AVENTURAS DE UM GORDO FOLIÃO E SEU AMOR PELO CARNAVAL, p OTTO FREITAS

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| 13/02/2012 às 08:01
Quem achar Mané Sapatão nessa muvuca do trio elétrico que nos avise please
Foto: DIV
  Mané Sapatão é um amigo de infância de Jeffinho, gordão como ele. A família pobre economizava em tudo. Sapato para as crianças, por exemplo, era sempre em tamanho maior, para ser usado por muitos anos - de preferência Vulcabras, durava mais que o dono. É daí que vem o apelido. Desde menino, portanto, Mané Sapatão já sofria bullyng, que nem tinha esse nome, naquele tempo.


  Mané Sapatão cresceu, ficou mais gordo ainda e aprendeu a lutar contra o preconceito e a discriminação. Carnavalesco até morrer, quanto mais a festa impõe limitações e obstáculos para foliões acima do peso, mais fôlego ele ganha para cair na folia, inclusive porque se tornou um boêmio de tradição. Até hoje ele não perde um Carnaval, é amor eterno.


  Todo ano era a mesma coisa: saia de casa na quinta e só voltava na quarta-feira de Cinzas. Ia a todos os bailes pre-carnavalescos. Na quinta, tinha o baile de Oxum, realizado em buates e hoteis; na sexta, podia escolher entre os bailes de Iemanjá, no extinto e demolido Clube Português, e o Preto e Branco, do Bahiano de Tênis, aquele tradicional clube social onde "preto só entrava pela porta da cozinha", segundo Gilberto Gil, e hoje virou delicatessen.  Na sexta tinha também o baile das Atrizes, o mais antigo de todos, no Teatro Vila Velha.  


   Anos mais tarde, depois de participar da criação da Banda do Habeas, que saia às quintas-feiras, na Barra, Mané Sapatão dividia a noite e sempre passava na banda antes de ir para o baile.


   Durante o dia, a programação era variada: esquenta na casa dos amigos, botecos, charangas e batucadas, barracas famosas e points tradicionais dos circuitos da festa, onde a galera cabeça se reunia, como Clube de Engenharia, Beco de Maria Paz e praça Castro Alves, além da Barra. Enfim, era o que ocorresse, só não saia em blocos com trio elétrico. Tudo regado a muita birita, como se dizia antigamente.


   Mané Sapatão
comia bem, como todo gordo e como é recomendável no Carnaval. Invariavelmente, rango pesado, com muita pimenta. O cardápio variava da tradicional feijoada, logo de manhã, para aguentar a farra, passando por acarajés e abarás, caruru e vatapá, moquecas de peixe, mocotó, rabada, sarapatel e dobradinha, consumidos ao longo do dia, até a madrugada.


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   Naquele sábado de Carnaval, depois do baile das Atrizes, Mané Sapatão amanheceu o dia comendo uma feijoada no caminhão do Carioca, na praça Castro Alves. Em seguida, subiu a rua Carlos Gomes, para tentar conseguir um taxi. Vestia uma camisa estampada, calça branca boca-de-sino e sapatos cavalo-de-aço, como era conveniente, pois além de gordo ele era baixinho e só usava sapato com salto mais alto.


  Foi aí que bateu a maior dor de barriga, aquela cólica fina insuportável. Acontece que, nos circuitos do Carnaval, bares e restaurantes bloqueiam os banheiros apenas para os clientes. Cada vez mais apertado, Mané Sapatão foi barrado em vários deles. Pálido, suando frio, já não agüentava mais quando um filho de Deus atendeu aos seus apelos. Relaxou e foi fatal: antes de alcançar o vaso, não deu mais para segurar.  Pior é que não havia papel higiênico no banheiro. Usou a cueca e jogou fora. Vestiu a calça branca sem cueca e saiu do bar, sorrateiramente.


   De volta à rua, todo melado, fez várias tentativas vãs para conseguir um taxi e voltar para casa. Os taxistas reagiam, assim que sentiam aquele mau cheiro insuportável:

- Porra! Não dá não, playboy, você está todo cagado!" - e batiam a porta na cara do gordo cagão, arrancando o carro, rapidamente.


   Resolveu, então, pegar um buzu. Morava longe do Centro, na Ribeira, um dos lugares mais bonitos desta cidade de Salvador, tão tristemente abandonada. Tentava ficar escondido, no fundão, pois a viagem é longa, mas acabava expulso pelo cobrador e tomava outro ônibus. Conseguiu ficar na terceira tentativa, mas depois de um tempo percebeu que tomara o ônibus errado. Teve que descer antes do seu ponto e completar o caminho a pé.


   Como estava no último banco, precisou atravessar o ônibus inteiro, pois a porta de saída era a da frente. Foi um vexame, todo mundo reclamando e fazendo aquele gesto do vai-e-vem com a mão em frente ao nariz. Indignado, o motorista gritou "vaaaaaiiii, cagão!" - e arrastou o carro antes de Mané Sapatão descer. Ele se espatifou no chão, com aquela banha toda, e torceu o pé.


   Capengando até em casa, com o sol do meio-dia lhe cozinhando o juízo, lá se foi Mané Sapatão, cumprindo sua sina - sujo, fedorento, com dor-de-cabeça e ressaca, a calça branca boca-de-sino melada de cocô de cima abaixo e o sapatão cavalo-de-aço cheio da merda que escorrera pelas pernas. Àquela altura, sofria as dores do tornozelo torcido e da humilhação. Cada passo era um tormento; os pés sem meias, atolados naquela lama de cocô, escorregavam dentro dos sapatos. Ploft, ploft, ploft...


   Mané Sapatão
estava física e emocionalmente abalado quando chegou em casa. A mulher dele, Maria Antonia, abriu-lhe a porta e ficou assustada com aquele quadro degradante. Mas não disse nada. Ninguém disse nada. Ele a abraçou e caiu no choro, incontrolável. Ela lhe deu um banho caprichado, jogou a roupa fora, e o colocou para dormir, carinhosamente.   


   Naquele ano, Mané Sapatão não brincou mais seu Carnaval, passou o resto da festa em casa, com Maria Antonia, o grande amor de sua vida - depois do Carnaval.



*Otto Freitas (otto.freitas@terra.com.br) é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há mais de 30 anos, em revistas, jornais e TV, comunicação corporativa e jornalismo digital.