Cultura

GORDINHOS CELEBRAM O VERÃO NA BAÍA DE TODOS OS SANTOS.POR OTTO FREITAS

VEJA
| 16/01/2012 às 08:11
Até hoje ninguém sabe quem comeu o beijupirá de Magali, a magnífica
Foto: DIV

     
   Anselmo era um gordinho pera, tipo Tim Maia: redondo no meio, pernas finas, bunda chulada, barriga empinada para frente. Mas era carismático e atraiu a atenção de Glorinha, uma bela mineira de pernas longas, peitos pequenos e pontudos, rosto lindo, pele de pessego. Amorosa, ela se apaixonou
por Anselmo. Como uma gueixa, fazia de tudo para ganhar seu coração - e possuir seu corpinho fofo, evidentemente, que Glorinha nunca foi boba.

   No verão de 1976, resolveu fazer-lhe uma surpresa: organizou uma festa de aniversário para ele, no mar da baía de Todos os Santos. Os convidados, pouco mais de uma dezena, foram escolhidos a dedo, incluindo sua amiga vendedora de cosméticos: a magnífica Magali, morenaça tesuda, olhos verdes, bunda dos sonhos, pernas exuberantes e bem definidas, Ivete Sangalo perderia longe.


   Quem participou do convescote jamais se esqueceu daquelas 24 horas ininterruptas de prazer. Os convidados, Jeffinho entre eles, reuniram-se à noite, na casa de Bunda Podre, em Amaralina, onde o anfitrião curtia solteirice temporária. Teve brinde com champanhe e parabéns para o aniversariante; foram servidos canapés, cervejas e vinhos.


    Perto da meia-noite, Bunda Podre fechou a casa e o grupo seguiu para a marina da Ribeira. Quase todos os homens eram gordinhos e barrigudos, que naquele tempo só maluco ou natureba fazia dieta e atividade física era coisa de atleta.


  A escuna fretada já estava abastecida e pronta para zarpar, tripulação a postos, mestre Xingó no comando. Glorinha havia providenciado a melhor comida e a melhor bebida que o dinheiro disponível poderia comprar. Os recursos saíram de uma vaquinha entre os convivas e do caixa particular, que ela era orgulhosa. Anselmo, o homenageado, só entrou com aquela parte do corpo que interessava apenas à própria Glorinha - por isso mesmo, ela foi logo ocupando a única suíte da embarcação.


  Era quase uma da manhã quando essa espécie de nau dos insensatos, cheia de pecado e loucura,
partiu da Ribeira para a ilha dos Frades. Seguiu a trilha que a lua cheia, deslumbrante, traçava no espelho do mar. A boa música do som mecânico, para ouvir e dançar, se alternava com o violão e a voz doce de Candinho. A bordo, jovens corações ansiosos e famintos. Homens e mulheres não tiravam o olho de Magali, que reagia com desdém.

Glorinha mandou servir bebidas variadas e os petiscos, tudo light, nada de farinha ou dendê, para desespero dos gordinhos: vinagretes de polvo, de lagostim e de pitu, além de ostras cruas. Lá pelas quatro da manhã, rolou um jantarzinho: salada de bacalhau alto em lascas com mamão verde, frigideira de maturi e um robalo em folha de bananeira, assado na brasa do fogareiro que o mestre Xingó mantinha a bordo, para essas ocasiões. De sobremesa, compotas de umbu e de caju em calda.
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   O dia já amanhecia quando os motores se desligaram. Vivica, uma estudante de teatro muito doida, subiu no mastro, gritou "terra à vista" e começou a cantar Vapor Barato, de Wally Salomão e Jards Macalé.  Mestre Xingó mandou descer a âncora na enseada de águas límpidas, translúcidas, da Ponta de Nossa Senhora, que naquele tempo era uma praia deserta.


   A maioria caiu no mar, para um banho refrescante na manhã antes do sol. Zé Fernando ficou. Em pé, na ponta da proa, contemplava a paisagem, deslumbrado, cofiando suas tranças rastafari. Candinho só fazia rir feito um abestalhado, dedilhando acordes soltos e dissonantes.


  Por tesão ou brincadeira, Lula Camisolão ensaiou uma picula em trajes íntimos, correndo pela praia
atrás de Lilian, uma galega magricela e sensual que se declarava moça-donzela, em plena era da liberação sexual. Suspeita-se, no entanto, que nada além aconteceu. E Magali? Ah! Magali... Só de pirraça, ela não tirou a roupa,frustrando a expectativa geral.  


   Após o café da manhã a bordo, a escuna tomou a direção de Mar Grande, na ilha de Itaparica. Anselmo tinha ligações afetivas com aquele lugar, até nisso a danada da Glorinha pensou. Ela já havia
encomendado o almoço no restaurante de um amigo dele. De entrada, camarões e lagostas
aferventados ao bafo; salada de peguari de primeiro prato e moqueca de beijupirá como o principal; um vinho branco bem gelado, lá dos vinhedos do valedo São Francisco, acompanhou a refeição. De sobremesa, goiabada cascão com queijo branco mineiro.

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   Após o almoço, a escuna deixou Mar Grande, de volta a Salvador. Glorinha levou Anselmo para a sesta na suite da cabine. No quarto ao lado, os dois beliches foram disputadíssimos, registrando
alta rotatividade, a exemplo do que acontecera na madrugada. Não se sabe se todos buscavam descanso, uma dormidinha rápida ou o quê. Magali desceu algumas vezes, mas é fato que logo retornava ao convés, não se demorava muito.


   Quando findava a tarde, mestre Xingó ancorou ao largo do Porto da Barra, a tempo de encerrar a festa diante do mais famoso por do sol da Bahia. Dora, com a voz mansa e o seu jeito zen, recitava Fernando Pessoa e cantava Caetano ("gosto muito de você/leãozinho..."), acompanhada carinhosamente pelo violão de Candinho.


    Na boquinha da noite, a brisa fresca entrava pela enseada dos Tainheiros, acompanhando a escuna até o cais da Ribeira,de mansinho. Foi um desembarque feliz e silencioso. Nada foi dito, nem desdito.


   Jamais alguém ficou sabendo exatamente sobre o que aconteceu naquelas 24 horas. Tudo está na lembrança de cada um. E umapergunta persiste até hoje: quem comeu a magnífica Magali?


   *Otto Freitas (otto.freitas@terra.com.br) é jornalista, formado pela Faculdade
de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há
mais de 30 anos, em revistas, jornais e TV; comunicação corporativa e
jornalismo digital.