Cultura

GORDO ABANDONA DIETA, MAS PROMETE RECOMEÇAR NO ANO NOVO,p OTTO FREITAS

VIDE
| 19/12/2011 às 08:04
Vida de Gordo é um suplício no Natal. Olha o perú ai meu camarada pode comer.
Foto: DIV
 

Nessa época, todo gordo abandona a dieta e jura recomeçar no Ano Novo.


Fim de ano é tempo em que a injustiça e a desigualdade tornam-se mais explícitas - uns poucos com a mesa entupida de comida e a árvore de Natal abarrotada de presentes, enquanto a maioria fica na dureza de sempre. É quando a hipocrisia cínica se espalha como praga: de repente, todo mundo fica bonzinho e fraterno, mesmo tendo passado o ano inteiro entre mesquinharias, egoísmo e grosseria.

Apesar de tudo isso, Jeffinho adora o Natal, porque é uma festa de família e de criança - Natal sem criança não é Natal. Afinal, é tudo por causa daquele menino que nasceu simples e passou a vida ensinando princípios que a humanidade insiste em contrariar.

Além do mais, como todo gordo que se respeita, Jeffinho adora a comilança que se repete por quase todo dezembro, até o reveillon.

A dieta e a atividade física ficam suspensas até segunda ordem, quando o Ano Novo chegar. É felicidade geral e irrestrita, pelo menos até passar o efeito da comida, quando a culpa e o arrependimento assumem, acusadoras, a consciência do gordo, sem dó, nem piedade.


Se gordo come sem fome ou razão, imagine quando sobram motivos e festinhas. É um evento atrás do outro. Tem a confraternização da firma na churrascaria; o Amigo Secreto (ou Oculto) do condomínio, do pessoal do baba, do boteco da esquina, da padaria. Tudo bem regado com muita cerveja, empadinhas, coxinhas de galinha, croquetes de camarão, pastelzinho de bacalhau...

Aí chega a noite de Natal, família reunida, aquela mesa enorme, farta e colorida pelas frutas da época. Antes de se embrenhar naquele mundo fantástico, Jeffinho, como todo gordo, é escalado para encarnar o Papai Noel da festa. É uma canseira, calor desgraçado, a barba postiça suada entrando pelo boca, uma coisa horrível!

Cumprida a nobre missão de alegrar a garotada, Jeffinho relaxa e se afoga nos beliscativos variados, entre fatias grossas de queijo Palmyra; frios e embutidos diversos; nozes, amendoas e castanhas do Pará quebradas na dobradiça da porta, como aprendeu quando era menino. Para arrematar, frutas secas caseiras, entre cajus, jenipapos e carambolas, para adoçar a boca e aliviar o gosto de cerveja, cidra barata e vinho tinto, tudo misturado.


 Como manda a tradição, a ceia é servida à meia-noite. A essa altura Jeffinho já tomou uma meia dúzia e está quase empanturrado. Mesmo assim, cai dentro daquele peruzinho sagrado, seco e insosso, acompanhado do risoto de todo ano e da indefectível farofa de passas e nozes. Sem contar as talhadas de pernil de porco, de tender (aquela estranha bola vermelha de carne de porco defumada toda espetada de cravos da índia) e de chester, o primo pobre do peru, sem contar as rabanadas, também conhecidas como fatias deparida.


Na hora dos licores e da sobremesa (torta de chocolate, uvas e frutas tropicais da época, sequilhos e biscoitos de nata, compotas de caju, de umbu e de limão em calda, entre outras iguarias da vovó), Jeffinho já está escornado, roncando no sofá. Mas atende disposto ao chamado para o derradeiro ritual pagão da noite natalina, experimentando de todas as variedades à mesa, tomando o cuidado, vez por outra, de limpar as papilas com os licores, artesanais e industrializados.     


Dia seguinte, começa tudo de novo: é o famoso escaldado de peru no almoço de Natal. Jeffinho chega cedo, a tempo de saborear as entradas em que se transformaram as sobras da véspera, enquanto as crianças correm pela casa, exibindo os brinquedos que Papai Noel deixou no sapatinho da janela.


Como vida de gordo não é só prazer, Jeffinho aproveita a família toda reunida no almoço para identificar quem lhe deu roupas e sapatos e em quais lojas foram comprados. É que geralmente o presente não cabe no gordo, sempre tem que trocar - a camisa fica apertada; a bermuda não entra; o tênis não dá nem para amarrar o cadarço.


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E o gordo vai ficando mais gordo e com a consciência mais pesada. A essa altura, já recuperou todo o peso do qual levou o ano inteiro para se livrar - e ainda ganhou mais alguns quilos de brinde, como sempre acontece.


No revellion passado Jeffinho nem conseguiu pular as sete ondas do mar - na terceira já estava botando os bofes para fora, mortinho da silva! Mas na hora de estourar a primeira champanhota da noite e mergulhar na festa para entrar feliz no Ano Novo, fez logo a velha promessa de todo gordo: recomeçar a dieta amanhã, primeiro dia do ano... Não! É melhor no dia 2, pois dia 1º tem a Procissão dos Navegantes, a cervejinha no barco, aquele almoço no mar...


A dieta fica para o dia 3, então. É. Mas aí começa o verão para valer: férias; praia, roskas e peixe frito; acarajé com Coca Cola ao por do sol; almoços entre amigos; ensaios dos blocos de Carnaval; fim de semana na Praia do Forte...

É melhor deixar para recomeçar essa merda logo nas Cinzas, depois do Carnaval. Pô!

Mas aí tem a micareta de Feira, o vinhozinho naquele almoção da Semana Santa, à base de comida baiana, família reunida em volta da grande e farta mesa coberta por toalha de linho branco, maravilha!...


Então, está decidido: a dieta recomeça depois da Semana Santa! Oxente! E o São João, a canjica, o bolo de milho, de aimpim, o milho cozido e assado na fogueira, o quentão, o forró na praça?...


Fodam-se todos, desabafa Jeffinho, chutando o pau da barraca. Mais vale um gordo alegre e feliz - como o Papai Noel, que vive rindo à toa - do que um magro triste e sem graça, feito peru de Natal. Rou, rou rou!




* Otto Freitas (otto.freitas@terra.com.br) é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há mais de 30 anos, em revistas, jornais e TV; comunicação corporativa e jornalismo digital.