Cultura

POLVO DE ARATUBA IMPÕE DERROTA A CHEFS ITALIANOS, POR OTTO FREITAS

VIDE
| 05/12/2011 às 08:28
Polvo a lagareiro: esse sim, invejável. Cozido a pressão é uma delícia
Foto: DIV
    Era um dezembro qualquer, na década de 1970, nessa época em que todo mundo começa a programar as festas de fim de ano. Jeffinho já havia decidido passar o Natal com a família; e no revellion aceitaria o convite dos irmãos italianos Rino e Reno: eles organizavam a confraternização na casa de veraneio que Pedro Bó alugara de um pastor protestante, em Aratuba, ilha de Itaparica. 


    Aratuba era, então, uma pequena aldeia de pescador, de poucos arruados, contando com o da praia. Luz era a da lua e água só da fonte. Aquilo era um paraíso, tão perto e ao mesmo tempo tão distante da civilização - tudo, enfim, que a turma de Jeffinho apreciava como lugar de recolhimento e diversão. Ambiente perfeito, portanto, para os eventos do revellion e Ano Novo.


   Em certo momento da vida, Rino e Reno foram uma espécie de mestres gourmet de Jeffinho, contribuindo de certa maneira para o seu atual excesso de peso. Ensinaram-lhe a apreciar uma boa vodka congelada, preferencialmente as russas e polonesas, e a aprimorar o paladar, nas incursões entre saladas, massas, queijos, mariscos e carnes especiais, incluindo os embutidos. Gostavam de receber os amigos, en petit comité, para convescotes no bangalô onde moravam, na rua Valdemar Falcão, Rio Vermelho.


   Dom Franquito era da turma. Amigo comum de Jeffinho, de Pedro Bó e dos italianos, combinou com Jeffinho que iriam juntos para Aratuba, saindo direto do trabalho para o terminal de São Joaquim. Na boquinha da noite, partiram atrasados, a bordo do lendário Opala azul 71 que D. Franquito dirigia garbosamente pelas estradas do Brasil. Foi o 13º e último carro na fila do ferry-boat.


   Normalmente, a última barca partiria à meia-noite, mas a operação havia sido suspensa mais cedo, por falta de demanda para completar a lotação de 70 veículos. Todo mundo na fila queria chegar a tempo de enterrar o ano no ilha. Alguém propôs fretar o navio pelo preço da lotação total, rachado entre os 13 carros da fila. E assim aconteceu.


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   Era uma bela noite de verão. A brisa fresca soprava do mar, quando o Opala azul desembarcou do ferry e tomou o rumo de Aratuba, seguindo veloz pela estreita estrada de barro. Passavam alguns minutos da meia-noite quando o carro entrou lentamente no povoado deserto, às escuras. A casa de Pedro Bó - a última da rua da praia, junto ao coqueiral - era um breu cheio de silêncio. Todos dormiam.


  Dom Franquito olhou com tristeza aquele quadro desolador, mas não se entregou. Justamente nessa hora, um cortejo de batuque, folguedo popular da comunidade, dobrou a esquina. Dom Franquito foi atrás, todo saltitante. Seguiram pela rua da praia e se perderam na escuridão. Até hoje não se sabe como aquela noite terminou - Dom Franquito é de pouca conversa.  


  Jeffinho ficou na praia, namorando as estrelas e se embriagando com vinho barato. Acordou com o sol da manhã, no mesmo lugar, abraçado ao garrafão de vinho. Atirou-se imediatamente à calmaria do mar, para rebater a ressaca e acalentar a alma.

Foi um revellion sinistro, como diriam os jovens de hoje.


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   Para atenuar a frustração da véspera, os irmãos italianos anunciaram, orgulhosamente, o cardápio especial do almoço de Ano Novo: polvo fresquinho, preparado em panela de barro e fogo de lenha. Tirando Pedro Bó - que come feito um condenado, mas continua com o corpinho de quando era adolescente - Dom Franquito e os irmãos italianos também estavam ligeiramente gordos e cultuavam os prazeres da boa mesa.


   Além de outros inúmeros talentos, Rino e Reno se destacavam como exímios chefs de cozinha amadores. Acenderam o fogo no quintal e jogaram o polvo na panela com água quente e os temperos. Daí em diante, Rino assumiu sozinho a empreitada, depois de aplicar a primeira surra no polvo.


   Cozinhar em fogo de lenha e panela de barro requer tempo e paciência de monge, polvo principalmente. Assim, a tarde avançava e o almoço não saia. Os convidados ficaram impacientes, sobretudo porque, àquela altura, alguém já observara que havia gente demais e polvo de menos. Além do mais, todos os biscoitos e outros beliscativos estavam esgotados, assim como o restrito estoque de cerveja fria da pequena geladeira a gás. 


   Rino começou a ficar nervoso, temendo o fracasso da empreitada. Por garantia, deu logo umas três surras extras no polvo, que permanecia impávido, durinho, durinho. O bicho apanhou mais do que mala velha. Nem cebola inteira, nem ervas finas, muito menos reza benzedeira - nada amaciava o danado.


   Já era fim de tarde quando Pedro Bó, jeitoso como é, conseguiu conter a rebelião que estava sendo engendrada por um gordão barbudo com pose de comunista cururu. Justo nessa hora Rino surgiu lá do quintal, com o polvo fumegante sobre uma tampa de panela e serviu a iguaria.


  Era praticamente uma borracha, imastigável; tampouco tinha sal ou qualquer sabor. Foi o maior fiasco gastronômico já registrado por aquelas bandas da ilha.


   Dom Franquito e Jeffinho foram matar a fome no armazém de Deco, onde comeram lingüiça artesanal de Maragogipe, untada com farinha seca de Nazaré e tostada em fogo de álcool na farinha espalhada em jornal sobre o balcão rústico da bodega, a única disponível.


  Depois de se fartarem, já era noite quando Jeffinho e Dom Franquito seguiram no Opala azul, tomando o rumo do ferry-boat, de volta para casa.




* Otto Freitas (otto.freitas@terra.com.br) é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há mais de 30 anos, em revistas, jornais e TV; comunicação corporativa e jornalismo digital.