Cultura

AS COMIDINHAS QUE FAZEM A DELICIA DA VIDA DO GORDO, POR OTTO FREITAS

VEJA
| 29/08/2011 às 08:14
Um roteiro à moda antiga na cidade do Salvador nas travessuras do gordo Jeffinho
Foto: DIV
   Jeffinho é razoavelmente espiritualizado, mas na juventude não se cansava de repetir o seu mantra preferido: "Só se leva dessa vida o que se bebe, o que se come e o que se brinca". Cultivando amigos e prazeres, peregrinou de bar em bar para encontrar pessoas e descobrir comidinhas diferentes. Entre um copo e outro, tentava uma nova dieta ou tomava sibutramina para inibir o apetite. Ou as duas coisas juntas. Tudo em vão, pois sempre engordava mais.


  Embora não seja internacional como Dom Franquito, desde os anos 70 do século passado Jeffinho freqüenta templos sagrados da boemia baiana, aprendendo a viver e a rir. É Marcão, parceiro de muitas pelejas, quem ensina: a risada é que embriaga e não a bebida; quanto mais a gente ri, mais bêbado fica.


  Uma coisa é certa: na hora de tomar uma, a escolha do boteco depende muito dos atrativos do seu cardápio, pois cachaça é igual a gasolina, todo mundo vende. Importante é companhia divertida, pinga de confiança, cerveja sempre gelada e tira-gosto diferenciado, aquela comidinha que só tem lá. Afinal, ninguém fica em mesa de bar beliscando escarola, rúcula ou chicória.


  Jeffinho sempre teve seus bares preferidos. O melhor filé com feijão tropeiro da madrugada era servido por Jaime, no seu Ocê que Sabe, na Rui Barbosa, onde se encontravam os amigos e aquelas mulheres respeitáveis com seus rígidos códigos de ética.


  No final da madrugada, começo da manhã, a feijoada era em Biu, no largo das Flores; e até o dia amanhecer Faleiro mantinha aberto o Tabuleiro da Baiana, na Carlos Gomes, com o inigualável filé de carne do sol com pirão de leite. No largo de Amaralina, onde o sol sempre entrava para se despedir da madrugada, o Jereré nunca fechava e se podia comer e beber de tudo.   


  Comida caseira e da boa até hoje é no Mini-Cacique, no Centro Histórico; cardápio internacional e escaldado de peru, tradição e elegância se encontravam no restaurante do hotel Chile, onde garçons antigos na casa sabiam de cor seu nome e de toda a família.


  Happy hour
só no Limão, na Pituba, único lugar da cidade onde se comia siri mole frito inteiro, crocante. Nos fins de semana, depois da praia em Placaford, na barraca de Pirilo, tinha o almoço ajantarado no seu Abaixadinho, perto do velho mercado de Itapuã. Ele mesmo preparava inesquecíveis moquecas de peixe fresco, com dendê e pimenta dentro, coisa de lamber os beiços.

  
   No Habeas Copus, um dos mais famosos bares de calçada da Barra, Renato era mais amigo do que garçon e servia uma incomparável e suculenta moela ensopada com fatias de pão francês. Daquelas mesas Jeffinho viu nascer a Banda do Habeas e o bar Ponte de Safena, que Malaca inventou e por algum tempo foi uma espécie de sucessor dos bons tempos do Habeas.   


   Havia também roteiros tradicionais a seguir, como a caravana para Itapuã, no tempo em que Itapuã ainda era longe e poético. Por volta do meio-dia, a barca partia de Diolino, no Rio Vermelho, onde se abriam os trabalhos com duas ou três doses de batidas de tangerina, cajá, mangaba, ou outra fruta preferida, entre as dezenas disponíveis. Todas geladíssimas.  


  Depois de muitas paradas pelo caminho, o penúltimo gole chegava com o cair da tarde: um porongo geladinho (água de flor de laranjeira, mel, cachaça e catuaba) em seu Mimiro, que há mais de 40 anos mantém a Pedra Que Ronca.


  Depois, acontecia o encerramento solene da jornada: comer peixe na folha de bananeira que seu Deraldo assava com paciência na brasa enterrada no quintal, lá na ladeira do Abaeté.


  Na volta para casa, quando as estrelas já cintilavam sobre as águas da praia da Sereia, o mergulho no mar era sagrado, para limpar a alma e agradecer por toda aquela felicidade.


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  Comer mocotó no mercado das Sete Portas era quase devoção, nas madrugadas daqueles anos. A farra só acabava quando os feirantes começavam a chegar trazendo das antigas hortas da Estrada da Rainha o perfume e o frescor das folhas e temperos verdes. Amigo de fé e boêmio com larga experiência, Bunda Podre e sua protuberante barriga eram presenças frequentes. Calejado na noite, cheio de artimanhas, costumava levar a feira da semana para casa, um jeito carinhoso de aplacar a ira da patroa.


  Bunda Podre
andava sempre de taxi, cuja frota era formada exclusivamente por fuscas. O passageiro viajava atrás, pois o banco dianteiro direito era retirado para dar lugar às compras e bagagens. Vez por outra, Bunda Podre esquecia no taxi a feira e o argumento para chegar em casa àquela hora da manhã.


  Naquele dia fatídico, ele não fez a feira. Gastou o dinheiro que tinha "no mocotó". Por isso mesmo, pediu ao taxista, um negro alto e forte, que subisse com ele até o apartamento, para pegar o valor da corrida.


  Embriagado, Bunda Podre bateu na porta, como de costume, pois há muito desistira de carregar no bolso as chaves de casa, de tantas que já havia perdido. Do lado de dentro, uma voz masculina, ameaçadora, perguntou quem era. A bebedeira passou na hora:


  - Quem é uma porra! Quem é você, que está aí na minha casa, seu filho da puta? Ana, ô Ana, o que esse cara está fazendo aí?! - gritava Bunda Podre, cheio de maus pensamentos, esmurrando a porta, desesperado.


  Assustado, o negão do taxi tentou aliviar a situação:


  - Deixa prá lá, playboy. Não precisa pagar. Esse negócio vai dar merda!


  - Deixa prá lá um caralho! Tem um cara aí no meu apartamento com minha mulher!... Ana, ô Ana, abra a porta, Ana!


  O taxista não esperou para ver. Desceu as escadas correndo e se mandou. Bunda Podre também se picou, logo em seguida, pois foi nessa hora que percebeu o tapete, na soleira da porta, com o número do apartamento. Estava um andar abaixo do seu.

A dona da casa também se chamava Ana - mas ele só foi saber disso no outro dia.



 * Otto Freitas (otto.freitas@terra.com.br) é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há mais de 30 anos, trabalhando em jornais diários, TV, revista, e na área de comunicação empresarial e jornalismo digital.