Cultura

COMER É MOMENTO SUBLIME E ESPECIAL PARA OS GORDOS, por OTTO FREITAS

VIDE
| 01/08/2011 às 09:00
Em churrascaria, gordos gostam do primeiro corte mal passado
Foto: DIV

Segundo Heráclito, filósofo pré-socrático que viveu nos anos 500 a. C., "é na cozinha que os deuses moram". Talvez por isso comer seja um momento sublime, espiritual, de celebração, que precisa ser compartilhado com a família, os amigos e os amores. Comer é alimentar a alma na hora de festejar o encontro, o amor e a alegria de viver.


Jeffinho adora comer. Não em fast food, pois além de todo o mal é rápido demais; muito menos em pizzaria, que pizza é lanche, não é comida. Tampouco em praça de alimentação de shopping, pois quem se alimenta é astronauta, que come pílulas. Jeffinho gosta de comer comida de verdade, sentado à mesa, altar desse ritual sagrado. Das preliminares ao charuto, licores e café, os orgasmos são múltiplos. No entanto, Jeffinho garante que, apesar das semelhanças, comer não é melhor do que sexo - embora comer também signifique fazer sexo.


Como tudo que é bom nessa vida tem preço alto, no restaurante gordo paga mais caro por esse prazer, pois o cardápio de ciladas é rico e variado. Já na chegada à churrascaria rodízio, por exemplo, o gerente olha meio contrariado para o obeso, antevendo o prejuízo. Lá para as tantas, os espetos começam a rarear, ou chegam com aqueles restos de carnes cozidas, quase cinzas. Jeffinho, evidentemente, só aceita o primeiro corte, mal passado.


Em qualquer tipo de restaurante, da churrascaria aos asiáticos, dos italianos aos franceses e baianos, o pingo é garantido e não faz distinção entre a camiseta básica e a gravata italiana. Não adianta recorrer aos guardanapos, tentando aparar os pingos, durante a longa viagem do garfo entre o prato e a boca, contornando o barrigão. Pingo de comida na roupa é para sempre. É a marca do gordo.


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Comer sozinho não faz sentido, mas escolher a companhia errada é cilada na certa. Dá a maior agonia comer ao lado de quem não gosta de comer. A pessoa à sua frente fica com aquela cara enfadonha, beliscando a comida como se estivesse sofrendo castigo. Portanto, convém buscar sempre quem tenha afinidades emocionais e espirituais com a comida; que respeite a refeição como um rito de prazer, calmo e pacífico, quase religioso (convém lembrar que praticamente todas as religiões incluem a comida entre as oferendas ao santos e deuses). 


Jeffinho viveu experiências amargas, até aprender a escolher melhor quem leva para sua mesa. Shirley Regina, por exemplo, não vai mais, está vetada. Ela é uma ambientalista mística lá de Cachoeira, não perde uma festa de Nossa Senhora da Boa Morte e dirige uma ong em defesa do rio Paraguaçu.


Certa vez, foram a um restaurante na beira-rio onde toalhas de renda de bilro cobrem as mesas. Jeffinho pediu moqueca de ostras. Shirley Regina escolheu um peixe grelhado, sem graça. Beliscou rapidinho, largou de lado, e passou o resto do tempo sonhando com a volta do vapor de Cachoeira, enquanto assistia, admirada, Jeffinho cumprir sua função à mesa.  


Sentindo-se solitário nessa hora tão importante para ele, Jeffinho ficou cheio de dedos e cerimônias, sem saber como se comportar. Tentou fingir indiferença diante da comida, mas estava doido para cair de boca nas suas ostras, embriagado pelo cheiro de dendê misturado ao perfume das angélicas que enfeitavam o salão.


Durante o almoço, não tirava o olho daquele peixe abandonado quase inteiro, imaginando como poderia ser transformado em um suculento escaldado. Ficou com vergonha e não pediu a quentinha. Largaram o peixe e alguma sobra da moqueca de ostra. Uma heresia.


Sheyla Cristina também está fora da lista de convivas. Psicoterapeuta natureba, prima de Jeffinho por consideração, é toda chique e conhece os melhores restaurantes de Salvador, mas só come salada de palmito (na verdade três ou quatro pequenos cones arrumados no centro do prato, com um pouco de azeite de oliva e ervas por cima).

A prima come aquela ração de passarinho toda cheia de poses e talheres. Aliás, se fosse merda em vez de palmito, certamente faria a refeição com a mesma elegância: tronco ereto, guardanapo no colo, punhos corretamente apoiados sobre a beira da mesa, talheres nas pontas dos dedos.


Constrangido, Jeffinho tentava disfarçar sua vontade quase incontrolável de atacar seu filé alto, mal passado, com fettuccine al dente, devidamente acompanhados por um tinto espanhol bem encorpado. De água na boca, os olhos brilhando de prazer, deliciava-se lentamente com aquela majestosa refeição, enquanto Sheyla Cristina, sem qualquer vibração, mastigava indiferente sua rodelinha de palmito.   


Salada tem seu lugar, faz bem à saúde, é verdade. Mas, como diz o jovem chef Mimoso de Souza, um especialista de vanguarda na alta gastronomia catalã, "se folha fosse mesmo gostoso, salada não seria entrada, mas o prato principal".



* Otto Freitas é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há mais de 30 anos, trabalhando em jornais diários, TV, revista, e na área de comunicação empresarial e digital.  otto.freitas@terra.com.br