Cultura

NO BARZINHO, MUITAS CILADAS PARA O GORDO BOÊMIO, POR OTTO FREITAS

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| 18/07/2011 às 09:01
Garçom se vira nos trinta com bar lotado e parece um ser volátil
Foto: BJÁ
  É quinta-feira, dia de profissional da boemia. Jeffinho parte para o bar, na companhia de Pedrão, velho amigo de copo e parceiro dos três digitos na balança. Como Pedrão sempre diz, a barriga chega antes, pedindo licença, abrindo caminho. Barriga de gordo praticamente tem vida e identidade próprias e a cada dia se enche mais de direitos e de razão - o que se amplia na proporção do seu tamanho.


  Gordo tem muitos obstáculos a vencer no bar, mas Jeffinho é um boêmio convicto e não se intimida com isso. Para começar, há sempre mais cadeiras e mesas do que espaço - e nenhuma privacidade. É uma cadeira coladinha na outra em meio a um corredor imaginário, virtual, por onde ninguém consegue passar, tirando o garçom.


   Mas garçom não conta porque se trata de um ser volátil, escorregadio, quase um gênio da lâmpada que vira fumaça para ultrapassar o gargalo da garrafa.  Sem contar que o treinamento no Senac tem carga horária dobrada, para desenvolver no aprendiz esta habilidade - e o limite de peso do aluno é fiscalizado com rigor.


   Agora imagine um gordo tentando atravessar esse labirinto estreito, vencer o desafio das cadeiras coladas umas nas outras, toda vez que precisa ir ao banheiro. A barriga vai pedindo passagem, empurrando, de leve; o gordo, todo constrangido, sentindo-se culpado por ser gordo, vai repetindo baixinho "licença, licença". Solenemente ignorado, não lhe resta alternativa senão empurrar a cadeira e seu ocupante com mais vigor, ou certamente vai ficar com as calças molhadas antes de alcançar o banheiro.


   Com raras exceções, banheiro de bar é uma calamidade pública.  É um cubículo, geralmente sujo, mal cheiroso e às vezes alagado. Não há papel higiênico, nem toalhas e sabonete. Mal cabem dois magros; se entra um gordo, a outra pessoa precisa esperar do lado de fora. Como Jeffinho não gosta de mictórios, para não sair todo salpicado pelo mijo alheio, só faz xixi no vaso. Mas entrar naquelas baias apertadíssimas requer contorcionismos circenses - só de bandinha, se encolhendo todo; e arriar as calças geralmente deixa sequelas dolorosas pelo corpo.


   Jeffinho não vê o próprio pé, muito menos sua humilde torneirinha, a qual não consegue segurar para garantir a pontaria, pois o braço encurta diante da majestosa barriga. Mijar sentado está fora de questão, pelo alto risco de contaminação envolvido. Então, é necessário, para acertar o vaso, inclinar o corpo, calcular o ângulo com precisão e confiar na autonomia certeira da torneirinha.


   Evidentemente, à medida que a noite avança essa operação vai se tornando quase impossível, pela sua complexidade e por culpa da bebida, gerando mais erros do que acertos. Portanto, não é raro Jeffinho mijar fora do vaso ou molhar as calças - situação constrangedora que ele às vezes nem percebe, por causa da barriga e porque geralmente não há espelhos no banheiro.

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    Mas, enfim, a noite é uma criança e a luta continua. Logo Jeffinho está novamente de volta à sua estratégica mesa de canto, perto do banheiro e com vista ampla para o salão e para o palco onde Leão e sua Banda A se apresentam regularmente. Mas, se a localização da mesa é boa, a cadeira é cilada garantida - a de plástico, aliás, é um perigo, queda inevitável para qualquer pessoa que não seja anoréxica. A alternativa oferecida é a cadeira de madeira, estreita, o gordo fica só com metade daquele bundão no assento - e passa a noite se bulindo todo, para aliviar a dor nas pernas e a dormência no traseiro.


    Quando chega a madrugada, Jeffinho já se atracava com aquela mocréia desvairada da mesa ao lado, com a qual se entusiasmou na hora em que Leão começou a cantar "larga de ser boba e vem comigo...". Foi paixão ao primeiro acorde e muitos goles depois. Prevendo o final daquele idílio, Pedrão havia abandonado o barco, não quis ficar segurando vela.


   A essa altura, Jeffinho tornara-se um homem rico e bonito, como todo bebado; baixou nele um Brad Pitt irresistível, alto, magro, de olhos azuis - e sua nova namorada, evidentemente, não era uma mocréia, como pensara à primeira vista. Tratava-se da própria Angelina Jolie, com seus lábios carnudos. Todo mundo olhou com inveja, quando se levantaram para ir embora.


   A saída triunfal foi um Deus no acuda. Com Brad Pitt incorporado, Jeffinho avançou, lépido e faceiro. Sentia-se praticamente um deus grego - logo, sem a barriga para ir pedindo licença, abrindo caminho. Então, lá se foi ele, impávido, derrubando mesas, cadeiras e bandejas, levando sua Angelina Jolie pelo braço. Aos olhos dos que testemunharam a cena mais parecia um elefante tropego, completamente embriagado, movendo-se em loja de cristal, em direção à saída.  


   No dia seguinte, Jeffinho abriu os olhos, de ressaca, mas todo feliz. Passou a mão sobre a cama e encontrou sua Angelina Jolie ao lado, satisfeita e nua sob os lençóis de fios de algodão egípcio. Logo constatou: até ela, quando acorda de manhã, sem maquiagem, fica parecida com aquela mocréia com a qual havia se engalfinhado no bar, embalado pela música de Hyldon, Na sombra de uma árvore


   Jeffinho jogou a perna por cima da mocréia e voltou a dormir, relaxadão, como um anjo gordo.




* Otto Freitas é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há mais de 30 anos, trabalhando em jornais diários, TV, revista, e na área de comunicação empresarial e digital.  otto.freitas@terra.com.br