Cultura

NA ADOLESCÊNCIA, NASCE O ADULTO BOÊMIO, GULOSO E OBESO, p OTTO FREITAS

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| 04/07/2011 às 08:07
Essa tijelinha de feijão é apenas um tira-gosto para Jeffinho
Foto: DIV
 

  Se era magro na infância, como se sabe, apesar da herança familiar, foi na passagem para a adolescência que Jeffinho começou a perceber mudanças no corpo. Em mais uma reunião da Associação dos Gordos Anônimos, ele retoma o depoimento sobre seu histórico genético e modo de vida.


  Tudo começou durante um veraneio em Itapuã, no tempo em que se vadiava na praça Caymmi e se tomava banho de mar, ao cair da tarde, usando um velho calção de banho, como Vinicius de Moraes registrou no seu poema-canção.


  Comia-se bem e fartamente, café da manhã, almoço e jantar, fora as merendas entremeadas. Afinal, Jeffinho era hóspede de Dedé, irmão de Ioiô, os dois tios por parte de pai que lhe ensinaram o caminho das pedras. Banhos-de-mar e brisa de beira-de-praia abrem apetite até de anoréxico. Resultado é que Jeffinho voltou do veraneio todo fofo - as costelas que se contavam na infância haviam desaparecido, milagrosamente.


  Ioiô e Dedé eram vivedores e tiveram forte influência na transformação do adolescente Jeffinho em um adulto boêmio, apreciador da mesa farta, da bebida de procedência confiável e da farra que reunisse ainda papo divertido, boa música e dança de respeito. Jeffinho também não esquece de Neneca, tio emprestado por parte de mãe, que lhe serviu os primeiros scoths, prudentemente misturados com guaraná Fratelli Vita ou água de coco - uma gostosa garapinha para aprendiz.


  Ioiô, que era mais velho e brincalhão, foi quem levou Jeffinho na Ribeira, prá tomar a primeira cachaça de folha da sua vida. Foram na companhia do tio Odilon, um fiscal de feira bom-de-copo que encerrava as madrugadas em volta de um prato de feijão com pimenta fresca mordida a cada garfada. Pé-de-valsa, boa conversa, Ioiô conhecia profundamente os segredos da boemia pura e verdadeira; dominava como ninguém os mistérios de um bem vistoso rabo-de-saia. Ioiô morreu em uma manhã de ceu nublado, à beira da praia, contemplando o mar.


  Dedé era o mestre dos pratos fundos onde engendrava misturas inusitadas. Também temperava caipirinhas como ninguém. A caipirinha de Dedé, aliás, só ficava devendo mesmo à mágica mistura que Seu Mimiro batizou de Porongo (água-de-flor-de-laranja, mel, cachaça e catuaba gelada), raridade que ainda se degusta no Pedra que Ronca Bar, em Itapuã, antiga e tradicional portinha para a alegria que resiste ao tempo: Seu Mimiro, aos 80, a mantém aberta há mais de 40 anos.  


  Já adulto e com filhos, Jeffinho tornou-se companheiro de farra do tio Dedé, nos seus últimos dias. Mas o velho gordo só partiu dessa vida aos 74, depois de fazer todas as extravagâncias a que tinha direito. Nos fins de semana ou durante os verões, Jeffinho e Dedé costumavam praticar a terapia do grito, em banhos-de-mar nas noites estreladas da ilha de Aratuba, após um dia ocupadíssimo na esbórnia gastronômica.


  Passavam horas em varanda, curtindo a brisa do mar, ou bordejando de boteco em boteco, entre caipirinhas ou doses de fino scoth. Os diversificados beliscativos, sempre com bastante molho verde de pimenta fresca, variavam entre acarajés, peixes e mariscos, ou uma autêntica lingüiça artesanal assada sobre o jornal velho, no improviso do fogo de farinha de mandioca ensopada de álcool.


  Esse ritual precedia o gran finale, para o qual se preparavam espiritualmente: a hora de se lambuzar na moqueca de polvo pescado na hora que haviam encomendado a Edgar, logo no começo do dia, para garantir - a demanda era infinita, mas a produção reduzida e restrita apenas aos mais chegados, entre os escolhidos.

 

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  Convém registrar aqui outro fato relevante, disse Jeffinho, para a platéia dos Gordos Anônimos: já no começo da adolescência, sua avó materna costumava lhe fazer umas certas vontades, sempre que o neto mais velho e afilhado predileto a visitava. Nessas ocasiões, o convite para a ceia (era assim que ela se referia ao jantar) era garantido, assim como as inesquecíveis malassadas que ela lhe preparava. Até hoje esse é um dos pratos prediletos de Jeffinho.


  Havia outros caprichos que essa vovó alimentava: toda quinta, final da manhã, Jeffinho ia para sua casa e se postava ao pé do fogão a lenha. Era dia de feira. Catarina, sua mãe-preta (ela trabalhava na casa da avó e ajudou a família na sua criação), trazia de Água de Meninos a farinha de Nazaré que chegava de saveiro, ainda quente, e o toucinho de barriga de porco para fazer a banha (naquele tempo não se usava óleo de soja).


  Jeffinho jogava a farinha no fundo do prato e ficava alí, extasiado, água na boca, apreciando a fritura, esperando a hora em que a mãe-preta começava a jogar o torresmo por cima da farinha, à medida que ia saindo da frigideira fervendo. Era o manjar dos deuses, servido em um ritual cheio de cumplicidade, amor e paciência.


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  Com os amigos da escola e do bairro onde morava, o adolescente-jovem Jeffinho fazia suas escolhas com muita facilidade: sempre preferia atividades lúdicas e de lazer que não lhe exigissem muito esforço físico.


  Chegou a jogar um baba ou outro. Foi um lateral direito horrivel, um perna-de-pau, embora não se pudesse considerá-lo um cabeça-de-bagre. Na formação dos times, era sempre o último escolhido - ou, mais frequentemente, acabava escalado como juiz, a quem ninguém respeitava, ou técnico, a quem o time não dava a menor importância.

   Mas Jeffinho não estava nem aí, pois sua diversão estava fora de campo, nas cervejas e tira-gostos após as peladas. Ele curtia a farra, o baba não passava de argumento.


    No segundo grau, quando todo mundo disputava jogos olímpicos estudantis, Jeffinho preferia fazer serenata, tomar batida de fruta e namorar em noite de lua na lagoa do Abaeté, no tempo em que aquelas areias brancas não eram tão perigosas como agora. Enquanto a maioria dos colegas brigava por um lugar para tocar tambor nas fanfarras da escola, Jeffinho preferia ir ao teatro, a uma festa de radiola prá dançar agarradinho no virtuoso bate-coxa, ou simplesmente se reunir com os amigos para cantar e tocar violão.


   Como se vê, Jeffinho nasceu com seu destino. Mesmo assim, ninguém lhe ensinou um jeito de fugir dele e viver saudavelmente, praticando esportes e comendo com moderação. Criança não nasce sabendo; adolescente aprende em casa e na escola. Para manter-se magro, ao longo da vida, é preciso começar cedo.


  Obviamente, isso não é nenhuma novidade. Mas parece que todo mundo  tem se dedicado mais a tratar da obesidade, em vez de adotar ações preventivas. Talvez recolher o leite (desnatado) derramado dê mais lucro. Mas nem tudo está perdido. As novas gerações ainda podem ter uma chance.


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* Otto Freitas é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há mais de 30 anos, trabalhando em jornais diários, TV, revista, e na área de comunicação empresarial e digital.  otto.freitas@terra.com.br