Cultura

A HERANÇA GENÉTICA DE UM MENINO MAGRICELA, POR OTTO FREITAS

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| 06/06/2011 às 08:27
A herança genética do gordo vista por Botero
Foto: DIV
  No tempo em que Jeffinho era menino não havia gordo - sem contar uns dois tios por parte de pai, a mãe e as avós. Nessa época ninguém se preocupava com alimentação balanceada e vida saudável. Saudável mesmo era o cotidiano das pessoas, pois todo mundo se mexia, andava muito para cumprir seus afazeres. Não existia computador, internet, celular, nem controle remoto.


  As prateleiras também não se abarrotavam de enlatados, biscoitos recheados, conservas e super-litros de refrigerantes, todos com seus conservantes, aromatizantes e outros químicos nefastos. No máximo, comia-se um kitute ou salsicha Wilson, no sanduiche do piquenique eventual em fins de semana.


  No entanto, mesmo nessa era da magreza natural, a avó materna de Jeffinho, uma baixinha sem pescoço, vivia acima do peso. Era mestra na cozinha: fazia uma feijoada verdadeira, com todas as carnes, que exigia dois dias de preparo, em panela de barro e fogão a lenha. Até hoje este é o prato predileto de Jeffinho, que não troca um bom feijão (com molho de pimenta verde fresca, salada de agrião e banana da prata), pelo mais sofisticado prato da alta gastronomia.


  Bem que Jeffinho poderia tem puxado ao avô materno, sujeito alto e magro que morreu com mais de 90 anos. Foi magro a vida toda, mas nunca abandonou os aperitivos antes do almoço - umas duas ou três doses de boa pinga com café frio (dizia que era prá quebrar a força da cachaça!). Afinava o paladar para o feijão, obra de arte da patroa que apreciava tanto.


  Mesmo já bem velhinho, todo dia batia seu feijão, sem arroz, com farinha, pedaços de carne de charque desfiada (também conhecida como carne seca ou do sertão) e molho de pimenta. Comia devagar, com calma e prazer, como se fosse um ritual de celebração aos deuses da cozinha. Infelizmente, Jeffinho não herdou sua magreza - só o gosto pela pinga e pela feijoada; da avó, ficaram o carinho e as gordurinhas a mais.


  Para cumprir sua sina direito, puxou também o lado gordo da família paterna. Mesmo nascido de mãe obesa, a genética ignorou solenemente o fato de Jeffinho ter pai magro, atleta na juventude que nunca engordou, como seus três irmãos.
 
  O pai dele, avô de Jeffinho, era afrodescendente, um mulato cabo-verde baixote, todo redondinho. Só andava vestido em ternos alinhados, chapeu panamá e relógio de corrente no bolso do colete. Não bebia, não fumava, e comia moderadamente, não era de exageros.


  Já a sua mulher, avó paterna de Jeffinho, honrava a tradição da família italiana: era robusta, apreciava uma boa mesa e conciliava sem preconceito o cardápio da terra natal dos seus pais com as iguarias luso-afro-brasileiras, incluindo pratos populares como mocotó, moqueca, rabada e sarapatel.

  Morreu jovem, com pouco mais de 50 anos, vítima de um câncer de mama. Um dia, com a doença já bem adiantada, mandou preparar um mocotó e reuniu os filhos. Comeu até se fartar. Voltou para a cama carregada e dois meses depois seguiu seu caminho, certamente feliz.


  Dois dos seus quatro meninos, Ioiô e Dedé, os mais gordos e gulosos como ela, eram os tios preferidos de Jeffinho. Os dois lhe transmitiram experiência e conhecimento sobre os prazeres da vida, principalmente os da mesa - e ele aprendeu tudo bem rapidinho, na mesma velocidade em que foi ganhando peso. Isso a partir da adolescência e juventude pois, apesar da herança genética tão desfavorável, tinha hábitos saudáveis e foi um menino magricela, desses cujas costelas se podem contar.

  
  Cresceu no imenso quintal da casa da avó materna, na Cidade Baixa, subindo em goiabeira, jogando gude e ferrinho, empinando arraia e batendo um baba de vez em quando. Sempre passava as férias de junho e de verão na casa da ilha, onde ocupava os dias na roça, tirando manga no pé, roubando caju e mangaba, tomando banho de mar e de água doce na fonte, comendo peixe fresco e matando a sede com água mineral. Vez por outra, pescava siri de jereré.


   No dia-a-dia, o menino Jeffinho tinha uma alimentação normal, simples, sem excessos. A família modesta garantia o básico - os quatro filhos (Jeffinho é o mais velho) sempre foram servidos sob controle rigoroso da mãe: feijão com arroz ou macarrão, farinha, um bife pequeno ou um pedaço de galinha de quintal; pouca salada, geralmente de alface e tomate; legumes quase nunca.


   Fora das refeições, havia a sagrada merenda da tarde, uma combinação ad infinitum de pão-de-açúcar com Qsuco - um pozinho solúvel que virava água vermelha com gosto de nada, mas pretensiosos sabores de morango ou framboesa. Tomar Grapette, Laranja Turva ou Coca-Cola só em dia de festa - e, mesmo assim, esses refrigerantes eram vendidos em pequenas e educadas embalagens de vidro, cerca de 200mls. Não havia as enormes garrafas pet de hoje, com mais de dois litros, induzindo ao consumo descontrolado e até mesmo ao vício.


   Essa é a história genética que ajudou a determinar o futuro gordo do menino Jeffinho - uma herança que se consolidou, na adolescência e na vida adulta, com o crescimento cumulativo dos maus hábitos e da falta de educação alimentar, do sedentarismo e da ignorância.


  Mas essa é outra parte da história que Jeffinho promete contar depois. Cansado, ele interrompe seu depoimento na Associação dos Gordos Anônimos, prometendo seguir adiante na próxima reunião.





* Otto Freitas é jornalista, formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atua na imprensa baiana há mais de 30 anos, trabalhando em jornais diários, TV, revista, e na área de comunicação empresarial e digital.  otto.freitas@terra.com.br