Cultura

ACORDA SÃO JOÃO; ACORDA BAHIA PARA A CULTURA, POR MARCO GAVAZZA

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| 16/03/2011 às 09:01
São João tradicional está ficando uma manifestação rara na Bahia
Foto: Blog do Valente

Após algumas semanas sem escrever esta coluna,  coisa que aparentemente ninguém percebeu, estou de volta.  Parei para descansar um pouco e passar o Carnaval no interior, longe dos circuitos oficiais, alternativos e extra-oficiais da capital; mas ao retornar a Salvador já me deparo com uma enxurrada de outdoors sobre os grandes "eventos" do São João

Na verdade os cartazes estão colados nas placas de estradas que ligam Salvador a algumas cidades do interior e já nestas próprias cidades. As mesmas bandas, os mesmos supostos cantores, as mesmas pseudo-estrelas, os mesmos pagodeiros semi-alfabetizados que infernizam a nossa vida o ano inteiro e com intensidade incontrolável no Carnaval, já estão a postos para "animar" o São João. Ou seja, só a Semana Santa (por enquanto) ainda está livre dos  Aviões de Calcinhas, Passaralhos, Siriri Camarada, Forróricos, Camisinhas Pretas e outros grupos de nomes tão criativos quanto suas performances.   


"Acorda João". Este foi o grito que ficou na minha memória como referência das festas de São João que me fascinavam a infância. Festas em que as grandes atrações eram as comidas típicas, as idas e vindas às casas dos vizinhos, o licor para espantar o frio de junho enquanto luzes e cores enchiam os céus, bombas espantavam os cachorros e faziam a felicidade da meninada. Os adultos dançavam até o amanhecer ao som dos trios de sanfona, zabumba e triângulo. Depois sentavam na calçada para chupar laranjas espantando a ressaca. "Acorda João" era a chamada para que todos aqueles que por acaso estivessem dormindo, levantassem e participassem da festa, pulando fogueiras que ardiam no meio das ruas da Ribeira, Politeama ou Itapoã.


Tudo isso acabou, em parte de forma natural causada pelo próprio crescimento da cidade que impediu a continuação das comemorações no meio da rua, o risco dos balões caindo aqui  e ali. O desenvolvimento urbano tem o seu preço e não adianta querer achar que dá pra fazer uma coisa sem perder outra. Mas em parte gigantesca, o São João -mesmo no interior- vem acabando porque os assassinos da cultura baiana seguem levando seus urros elétricos para qualquer lugar onde alguém se disponha a pagar um ingresso, pouco se importando com o que estão destruindo.


Apenas o lucro interessa e assim eles montam seus shows padronizados, com as mesmas músicas medíocres, as mesmas coreografia baratas, as mesmas cabeças raspadas, o mesmo ritmo sem qualquer criatividade e o mesmo dilúvio de bundas, peitos e coxas, em qualquer lugar aonde vão.  O
 
"show" serve para Festival de Verão, Carnaval, Micareta, São João, Natal e o que mais apareça pela frente, seja em Salvador, Teixeira de Freitas ou Barreiras. Como sempre tem um prefeito do interior disposto a torrar um pouco mais os recursos da prefeitura, eles contratam estes pesadelos itinerantes esperando serem recompensados em votos. E com um grande retorno financeiro para a cidade, dizem, cheios de autoridade.


A mídia não se cansa de noticiar a movimentação destes predadores musicais, de calcular a multidão que compareceu aos shows e esticar o quanto possível o assunto, mostrando que Carlinha estava de caso com Odobró do Axecrável, mas terminou tudo e parece estar envolvida com Priscila,  do Sapagode.  O espaço dedicado à idiotia musical é tão grande quanto a própria. E para que ninguém esqueça que o fim do mundo está próximo, em todas as esquinas da cidade existe um Gol ou um Chevette com o porta-malas aberto e milhares de decibéis lançando ao ar mais uma asneira igual a todas as outras, recheada de trocadilhos, cacófatos e outros recursos baratos para explicitar uma baixaria que podia até ser engraçada quando a gente tinha 8 anos e tudo era pecado. Mas hoje?


É muito, muito cansativo. Eu simplesmente não agüento mais tanta mesmice e apelação. E nem quero entrar no tema nacionalmente, abordando BBBs e outras aberrações da televisão brasileira. Estou dentro das nossas fronteiras estaduais.


Todos sabemos que comunicação e cultura populares não são movimentos estáticos, imutáveis e perenes. Precisam de renovação para seguir atendendo as necessidades de novas gerações, novas tecnologias e novas ferramentas de troca de idéias. Porém, acima da comunicação e cultura populares, numa linha muito clara que as divide, está a tradição cultural e esta sim, precisa ser preservada pois que ela se constitui naquilo que alguém decidiu chamar de "patrimônio imaterial". A expressão é feia e presunçosa, mas é a tradução correta do valor existente em uma coisa simples e centenária como o samba duro, a roda de capoeira ou uma procissão. 

Neste pacote deveriam estar incluídos o Carnaval e o São João.  Não estão.  Estes existem agora apenas na memória de alguns, pois o que se configura como comemoração destas duas festas é o que resta quando elas acabam: milhões de latas de cerveja e red bull, papelotes de cocaína, cachimbos de crack, camisinhas, escombros de palcos, um insuportável zumbido no ouvido e centenas de milhares de reais nas contas correntes dos predadores mais festejados. Que por sinal, já estão bem longe, em seus aviões ou supervans de luxo.


Qualquer pessoa que possua a mínima capacidade de raciocínio, entende que não é possível, sequer nos países totalitaristas, uma nivelação oficial da cultura. Sempre haverá quem prefira uma "schlager" que um Händel. Tudo bem, democracia é assim e diversidade é isso: cada um lê, ouve, assiste  aquilo que combina mais com a sua formação cultural.


Mas parece que contrariando todos os princípios da evolução humana e da diversidade de pensamentos e formas de expressão, o nivelamento está acontecendo na Bahia.  E nivelamento por baixo.  Estamos sendo compulsoriamente submetidos à imbecilidade, a menos que fiquemos trancados sozinhos em casa, com a televisão e o rádio desligados. Ainda assim, talvez seja necessário instalar proteção acústica nas paredes, pois nunca se sabe o que vem dos lados, de cima ou de baixo.


Como profissional de comunicação e marketing sei que se existem infinitas bandas iguais, tocando as mesmas idiotices durante todo o ano é porque existe público para sair de suas casas e ir até lá ouvir as mesmas bobagens e ver os mesmos requebros.  E onde houver multidões reunidas, anunciantes pagarão para pendurar seus banners e balões.  "Business. Nothing personal", diria Gordon Gekko.  Mas está lá.  O que faz esta multidão ir atrás de qualquer debilidade elétrica e amplificada, é um conjunto complexo de fatores que diversos sociólogos estão tentando explicar.  O que aconteceu conosco? Porque ser medíocre transformou-se em status da nossa classe média e tirar a roupa na televisão, a meta da nossa juventude?  


Explicações existem, é claro. O que parece não existir até agora é uma forma segura de nos livrarmos desta  praga que nossa gente insiste em alimentar, endeusar e enriquecer.


Pior: parece não existir também a possibilidade de defendermos a tradição cultural ou o retorno a uma cultura popular com um mínimo de conteúdo, graça, picardia, malícia.  A cultura popular baiana que encantou o mundo antes que os predadores a reduzissem a pó em troca de milhões de reais.