Cultura

A COMUNICAÇÃO E COMEMORAÇÕES COM NÚMEROS REDONDOS, POR MARCO GAVAZZA

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| 27/10/2010 às 08:12
Simbologia dos números redondos tem a ver com os signos e as forças da natureza
Foto: CPT

Esta é a coluna de nº 100 que escrevo para o Bahia Já. Isto, rigorosamente, não significa nada, mas me pergunto: porque o brasileiro -ou talvez seja mais certo dizer, a humanidade inteira- se sente tão atraída em registrar redondezas; números redondos? 


Por todos os cantos do planeta estão espalhados registros dos mais diferentes sobre o GP nº 200 de Schumacher, o livro nº 50.000.000 de Paulo Coelho vendido na Dinamarca, o milésimo gol de Pelé (depois ele continuou fazendo gols, mas ninguém se interessou em seguir contabilizando) e outros números semelhantes. Os 40 anos de carreira de Toquinho estão sendo comemorados com uma bela turnê pelo país, exatamente como foram comemorados os 30 anos de carreira e provavelmente serão comemorados os 50 anos. 


Aniversário então é fatal: 20, 30, 40, 50, 60 etc. todos parecem merecer uma comemoração especial, até que se atinja, em raros casos, a apoteótica casa dos 100 anos, como se isto fizesse alguma diferença em relação ao conteúdo ou à qualidade da vida assim vivida.  Em alguns casos chegamos ao extremo de "comemorar" os 60 ou 80 anos de alguém, caso ainda estivesse vivo.  Homenagens ao centenário do nascimento de gente que morreu com 40 e poucos anos não são raras.


A felicidade conjugal também é aparentemente medida em redondices, com as bodas disso e daquilo, até as gloriosas bodas de ouro, completando 50 anos de casamento. Talvez por ser o casamento uma instituição bastante vulnerável e dada a finais repentinos, a este acrescentamos também "as metades" como motivo de júbilo e temos então, por exemplo, as bodas de prata para aqueles que alcançam os 25 anos dormindo lado a lado.  Se não chegarem aos 30, ao menos comemoraram "meio" século.


Até o próprio tempo parece gostar destes espaços segmentados em redondilhas. Décadas, séculos, milênios, são referências históricas de destaque quando se pretende compreender como a humanidade segue em frente.  As comemorações pela passagem de um século são magníficas, embora no dia seguinte tudo continue da mesma forma, salvo algumas ressacas, estas sim, memoráveis. A mudança de milênio, que tivemos o privilégio de assistir, teve comemoração dupla, pois não se chegou a um acordo se o século 20 terminava em 1999 ou em 2000. Para não haver possibilidade de falha, ao final dos dois anos o século 21 recebeu boas vindas mundiais espetaculares.


O fato de o Brasil ter completado 500 anos de seu descobrimento foi motivo uma extensa agenda de comemorações, embora isto não tenha alterado rigorosamente em nada a minha, a sua ou a vida de qualquer brasileiro.  Exceto talvez para quem tenha sido responsável pelo orçamento financeiro destinado às comemorações.


Será que Pelé teria sido menos importante para o futebol se tivesse marcado "apenas" 999 gols?  E o Schumacher que não chegou ao GP nº 300 (correu "apenas" 262 corridas antes da aposentadoria e da posterior volta aos circuitos) deixaria de ser um ídolo da Fórmula Um? Não, claro que não.  Ayrton Senna quando deixou a vida e as pistas na curva Tamburello, em Ímola, tinha feito exatamente 80 pódios. Se tivesse concluído aquela corrida poderia ser o 81º. Ou não. Não faria a mínima diferença na formação do mito em que se tornou como esportista.  A grande explosão de liberdade que se iniciou em Paris em 1968 teria sido diferente caso tivesse acontecido digamos, em 70?  Creio que também não.  Alguma diferença perceptível entre os anos 2000 e 2001? Ou entre 1999 e 2000?  Nenhuma. 


Os avanços e retrocessos dos seres humanos parecem seguir uma seqüência própria, que pouco tem a ver com as datas que diariamente riscamos em nossas agendas ou ficam para trás nos registros eletrônicos de nossas vidas. Os relógios, analógicos ou digitais, são uma espécie de moto-perpétuo que repetem seu ciclo indefinida e alheiamente ao que acontece em volta.


Porque então esta necessidade de comemorarmos como algo extraordinário um número "redondo"?


Não tenho certeza, mas tenho a vivência de que a comunicação sabe muito bem como aproveitar esta tendência das festividades esféricas. Jubileus, aniversários, decanatos, cinqüentenários, tudo pode ser transformado em promoção de vendas ou liquidação "especial".  O assinante nº 1 milhão de uma operadora de telefonia pode ser tema da uma bela campanha institucional.


Tenho sobre a minha mesa de trabalho há vários anos, funcionando como porta canetas, uma caneca comemorativa dos 500 mil exemplares de circulação alcançados pela revista Veja. Infelizmente esqueceu-se de registrar a data e não faço a menor idéia de quando aconteceu isso, o que serve para reforçar a minha visão sobre a pouca utilidade destas comemorações redondas.


Fora do universo da comunicação publicitária e mercadológica, talvez tudo isso seja apenas uma forma de organizar as nossas lembranças na memória, assim como nossos computadores "organizam" os arquivos por data de criação, embora não lhes confira qualquer registro especial ao estarmos criando o file de texto nº 1000 ou enviando o e-mail nº 50 mil. 


Por outro lado, me passa pelo pensamente também que nesta simbologia comemorativa dos números redondos possa estar embutida uma complexa equação que reúne nosso emocional e a geometria, esta igualmente tentada a contemplar com destaque as simetrias, contra-planos e outras coisas misteriosas como o ponto de encontro das linhas paralelas.  Algo que pode nos remeter ao equilíbrio dos astros vagando pelo universo e à perfeição dos ciclos e das órbitas, fazendo da mecânica celeste este mistério permanente e do qual -todos nós- fazemos parte. Assim, de alguma forma nos aproximamos da simetria, do sonho do equilíbrio e da perfeição.


Pode ser um atrevimento da minha parte saltar do churrasco comemorativo dos 30 anos de uma amiga, por exemplo, para os mistérios do cosmos, do infinito e até da criação.


Mas esta é minha coluna nº 100 e porque eu deixaria passar em branco algo que a humanidade inteira concorda em comemorar?