Cultura

CHILE MOSTRA AO MUNDO QUE A VIDA É VALORIZADA, POR MARCO GAVAZZA

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| 15/10/2010 às 09:10
Resgate de mineiros do Chile foi discurso de fraternidade não escrito
Foto: Gobierno Del Chile

Uma das cenas do filme "Treze Dias Que Abalaram o Mundo" mostra o secretário de estado norte-americano, numa sala de operações do Pentágono,  orientando a execução do bloqueio naval imposto à Cuba durante a crise dos mísseis nucleares soviéticos instalados na ilha. Ele supervisiona à distância a abordagem aos navios, obrigando a retornar aqueles que podem estar transportando armamentos e liberando os que transportam alimentos, roupas, etc.


O almirante que comanda as forças navais segue sua orientação muito a contragosto, pois o que os militares querem mesmo é invadir a ilha, detonar logo os mísseis e Fidel junto. Num determinado momento o almirante ordena abrir fogo contra um dos cargueiros, levando o secretário de estado à fúria.


Aos berros ele dá a contra-ordem de cessar fogo e diz que aquilo não é uma guerra, é uma nova linguagem que está sendo mostrada ao mundo, para resolver uma crise militar. "O que vocês estão vendo é o presidente Kennedy conversando com o camarada Kruschev". 


A comunicação transcende muitas vezes os sinais gráficos, os sons e as imagens. Em determinadas situações, atitudes representam um diálogo sutil e alto poder de convencimento.  O resgate dos mineiros chilenos presos numa mina no deserto de Atacama foi também uma forma de comunicação com o mundo, mostrando que em algum lugar deste planeta encapetado, a vida ainda é valorizada.  Desta mesma Latina América repleta de momentos de extremo desprezo pelo ser humano, saiu o discurso não escrito da fraternidade e do sacrifício pelos que estão com a vida por um fio.


Também aqui podemos dizer que não se tratava de uma rotineira operação de salvamento, mas de uma nova linguagem sendo mostrada ao mundo. Porque os lugares, as situações e as atitudes, falam.


Assim como as cidades também falam com seus habitantes e dirigentes.  Paris conversa com quem atravessa suas pontes e lhes fala de amores imortais. New York dialoga com quem come cachorro-quente em Downtown e lhes dá dicas a respeito da Bolsa de Valores. Viena murmura com quem percorre seus bosques e mostra que o vento pode ser uma sinfonia. Aos domingos até o meio-dia, São Paulo fica em silêncio, respeitando o sono dos que atravessaram a longa noite de sábado deliciando-se com seus segredos.


Sobre este falar urbano é que reflito e me entristeço quando vejo as praias de Salvador.


Assim como as cidades falam, cada povo, cada cultura, tem a sua forma própria de conversar com elas, com seu habitat. A maneira com que o carioca se relaciona com suas praias é específica. Eles vão à praia para se bronzear, ganhar aquela aparência saudável, mostrar o corpo bem cuidado e fazer vida social. Encontrar os amigos, circular de grupo em grupo como quem está num salão de festas.


Ir à praia na Inglaterra é diferente. É correr atrás de gaivotas, brincar com o cachorro, sentir o mar respingar no rosto, molhar as pernas das calças nas ondas que quebram na areia cheia de pedregulhos.


Os habitantes desta cidade do Salvador vão à praia para beber, comer, conversar, ouvir música, ver a paisagem e muito eventualmente dar um mergulho no mar. Muito antes que houvesse "barracas" de praia, era assim. 


Minha família costumava passar os verões em Itapuã, quando ela não havia se transformado num bairro tornasse um bairro, antes que tivesse ruas pavimentadas, energia elétrica ou sequer água encanada.  As nossas idas à praia incluíam obrigatoriamente um vasto conjunto de comidas e bebidas levados de casa e praticamente todo o tempo passado na praia, era sob sombreiros, com muita conversa entre irmãos, cunhados, tios e tias, enquanto nós crianças, fazíamos castelos na areia.


As praias de Salvador sempre entenderam a linguagem dos banhistas da cidade e ficaram cada vez mais generosas ao oferecer espaços para que se praticasse esta forma de diálogo entre a cidade e seus habitantes.


É claro que o crescimento urbano, o aumento da população e da freqüência às praias, a ampliação dos equipamentos capazes de satisfazer a todos, geraram uma situação de comprometimento ambiental e alguma coisa precisava ser feita em relação às nossas praias.


Este "fazer" das autoridades responsáveis pela preservação a cidade, seria muito fácil, muito simples, pois que todos nós sabemos como se dá a relação de amizade entre quem vive em Salvador e suas praias. Não há mistério algum.  


Acontece que ninguém respeitou o diálogo que existe entre a população e suas areias, entrando na conversa com um dialeto absolutamente incompreensível, interrompendo bruscamente um bate papo que existe há muito tempo.


A comunicação quando assume a forma da ação é porque se pressupõe a existência de um consenso a respeito daquilo que se está dizendo.  Esperava-se portanto que a interferência da autoridade na conversa ente o povo e sua cidade, fosse para facilitar ainda mais essa vivência. Até Vinicius de Moraes percebeu que praia em Salvador é o lugar onde se observa o mar inaugurar um verde novinho em folha e se aproveita com doçura uma cachaça de rolha. 


Entretanto, do monólogo entre a lei e as praias de Salvador, não se aproveitou uma única palavra.  Porque a lei nunca conversou e menos ainda entendeu as nossas praias e as idéias que eles trocam com a nossa gente.