Cultura

KAKÁ E A OVERDOSE EM NOME DE JESUS CRISTO, POR MARCO GAVAZZA

VIDE
| 22/06/2010 às 23:00
Kaká se diz emissário de Jesus no Planeta Terra
Foto: ARQ

Não entendo quase nada de futebol e não sou religioso. Vou então meter duas colheres em assuntos aos quais não fui chamado e nem são o tema oficial desta coluna. Porém, para quem vive de observar comportamentos e transformar isso em textos ou anúncios de publicidade, é perdoável.

Pelo que já andei lendo e ouvindo, o Kaká antes e acima de ser jogador de futebol, é um emissário de Jesus em nosso planeta, com algum propósito meio vago, mas que ele deve saber qual é. Até aí, nenhuma restrição. Todo mundo tem o direito de acreditar naquilo que bem entender. Tem gente que acha Jesus apenas um personagem criado por São Pedro para ter uma base mística necessária à consolidação da religião que ele queria fundar. Por aí a gente vê que opiniões vão de extremo a extremo e todas elas são permitidas. Como disse o próprio jogador: "Há algum tempo os canhões do Juca Kfouri são disparados contra mim e o que me deixa triste é que essas críticas não são pelo futebol, mas porque ele tem problemas comigo por causa da minha religião. O problema dele em relação a mim é minha fé em Jesus Cristo. Da mesma forma que respeito ele como ateu, queria que ele me respeitasse pela minha fé em Jesus Cristo".

Segue então o Kaká representando Jesus e jogando futebol, enquanto o Kfouri perde o tempo dele. Assisti aos jogos da seleção brasileira -como era inevitável- e deu pra ver que o Kaká -o jogador- ao ser tocado por qualquer adversário atirava-se ao chão contorcendo-se e simulando ter sido atropelado por um buzú Cajazeiras-Lapa. Aí, não consegui entender mais quem é o Kaká.

Sendo jogador de futebol, ele pode fazer todas estas artimanhas no sentido de trazer o jogo para o seu time. Fingir, mentir, simular etc. Mas sendo ele um emissário de Jesus, essas coisas não lhe são permitidas. Na verdade, ninguém precisa ser ungido por qualquer divindade para que tenha um código de comportamento e uma ética pessoal e profissional. Mas vá lá, o rapaz em questão ao usar o crachá de funcionário de Jesus, expõe uma suposta fidelidade aos princípios do seu chefe e este, em absoluto, permitiria a mentira, a encenação e o fingimento como recurso para tirar proveito de uma situação.

Muito bem. O que desejo comentar aqui não é a dualidade de Kaká, pois que todos nós nos contradizemos a toda hora. Faz parte da natureza humana pensar uma coisa e fazer outra. O que acho muito curioso mesmo é que depois de dois jogos atirando-se ao chão, ou à grama, melhor dizendo, seja para evitar choques verdadeiros e contusões, seja para conseguir uma chance de jogada com bola parada para a seleção, o Kaká termina sendo expulso de campo por agressão. Não é incrível? Fingiu tanto que apanhava e acabou expulso por bater. Muitos dirão que foi castigo de Jesus, seu mentor; alguns lembrarão que a toda ação corresponde uma reação contrária ou que o feitiço virou contra o feiticeiro; outros, mais velhos, comentarão baixinho que quem semeia vento, colhe tempestade. Não me interessa muito essa parte. Kaká –o endivinado- que converse com Jesus e se entendam.

Pra mim, não é nada disso. É erro estratégico mesmo. A overdose de uma mesma ação atinge um ponto em que ela deixa de ter efeito positivo e passa a trabalhar contra quem a promove. Em propaganda existe isso. É o ponto de saturação, quando o consumidor atinge o limite do suportável diante de uma campanha publicitária que o persegue noite e dia, onde quer que ele vá. Na Bahia e especialmente em Salvador, estamos vivendo um momento exatamente assim, em que o ponto de saturação já foi há muito ultrapassado. Páginas de jornais e revistas são passadas rapidamente, olhos desviam-se imediatamente de outdoors, a tecla “mute” dos rádios e tvs são acionadas 2 ou 3 segundos depois que entra no ar, pela terceira vez no mesmo bloco comercial, a mensagem do anunciante. O ponto de saturação é um verdadeiro tiro no pé.

Tudo isso me lembra um conto de Júlio Cortazar, em que os moradores de uma rua qualquer de Buenos Aires, preocupados com a segurança, contratam uma empresa privada para fazer a vigilância noturna da área. Acontece que a empresa, para mostrar que está mesmo realizando o seu trabalho, instala nos carros que fazem a ronda, potentes alto-falantes que são utilizados para informar a execução do serviço e também, na embaçada visão dos seus donos, fazer propaganda.

Assim, a cada 15 minutos os moradores da rua que contrataram o serviço são acordados em sobressalto, ouvindo os berros que saem do carro da ronda: “Durmam tranqüilo que a Seguraires zela por você. Seguraires, a mais eficiente empresa de segurança de Buenos Aires.” Passam outros 15 minutos e lá vem novamente: “Seguraires cuida do seu sono. Durma em paz com Seguraires, a melhor etc.etc.etc.” Isto se repete noite adentro a cada quarto de hora, até que um dos moradores da rua, já em desespero, tira um fuzil do armário e começa a disparar contra o carro da ronda, que foge na mesma hora e todos voltam a dormir em sossego.

Tudo na vida é uma questão de dose. Humphrey Bogart dizia que o mal da humanidade era estar sempre duas doses abaixo do normal. Ou seja, o normal para ele não era tão normal assim e acabou tendo problemas com as tais doses. Até água em excesso pode prejudicar a saúde. Este princípio da dosagem, que em tese é a base da homeopatia, aplica-se também à comunicação e ao comportamento humano.

Voltando à dualidade de Kaká, creio que ele cometeu o mesmo erro que cometeram a Segural, Humphrey Bogart e o anunciante baiano onipresente: exagerou. Com isso levou muita gente a acreditar que estava realmente sendo massacrado e quando aconteceu o inverso –o adversário fingiu ter sido agredido- todo mundo acreditou que era uma reação natural do pobrezinho do Kaká, coitado, apanhando tanto que perdeu a calma e reagiu daquela forma. Totalmente compreensível. Só que o juiz levou a sério.

A vida real e a comunicação humana estão cheias de exemplos cotidianos deste tipo de exagero. Na vida real, os chavões vão desde o chefe que ameaça de demissão diariamente seus colaboradores e nunca demite ninguém, perdendo completamente a credibilidade; até a mulher que jura tantas vezes por dia te amar perdidamente que você começa a desconfiar que ela tem outro. Ou o home que só percebe a hora de encerrar uma paquera quando a paquerada fica inimiga dele.

Na comunicação surgem os quadros humorísticos que se repetem à náusea; os comentaristas que só tratam do mesmo tema; os analistas temáticos que só vêem um problema, uma solução e um nome para resolver tudo; os cantores que cantam sempre a mesma música e por aí se seguem os casos de overdose de atitude ou comunicação.

Um dia alguém percebe que o rei está nu e nem se dá ao trabalho de comentar isso. Simplesmente vai procurar outra coisa para ver. Por isso que eu vivo mudando tanto de assunto neste pequeno espaço. Quem vai se dar ao trabalho de acessar isto aqui se já souber o que eu vou escrever?