Cultura

CRÔNICA DE UMA NOITE SEM TEMPO, POR FREI JOSÉ RUY G. LOPES

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| 05/06/2010 às 14:24
Frei Ruy Lopes: - A grandeza do ser humano precisa ser restabelecida
Foto: ARQUIVO
 

          Silenciosamente, como sempre fazia com seus pobres, sem nenhuma publicidade. Discretamente como sempre agia com seus doentes. Religiosamente, como sempre foi movida em sua vida. Comovidamente, como sempre foi o seu nobre coração. Assim foi o rito de exumação dos restos mortais da mais doce imortal baiana, Irmã Dulce. Não houve tempo para contemplar se o céu estava estrelado ou enluarado. O tempo parou para assistir áquela que, para dentro de um túmulo, estava dentro do coração de toda Bahia.
 
            A expectativa tomava o semblante de todos. A emoção era demasiadamente controlada. Mas, a alma de cada um estava inquieta. Era um reencontro não com o que sobrou, mas com o que ficou em cada um. Dos que foram beneficiados e ali estavam, dos que foram agraciados e ali testemunhavam. Foi assim que, ao depararmos com o caixão de Irmã Dulce alguns deixaram cair lágrimas. Alguém dizia que era como o derradeiro momento, enquanto eu pensava: é o primeiro. E em tudo isso, em meio às lacrimosas orações franciscanas, esquecemos de contar nossos pedidos e nossas intenções. O momento era demasiado forte e mágico para coisas pequenas. O pequeno corpo ainda encantava pelas proezas do amor.
 
                      De repente a observação de Iraci, sua fiel seguidora: "Ela é agora aqueles a quem acolhia". Mas, ela sempre foi isso. Seu coração é que não era tão bem visto. Muito própria a observação de Santa Clara de Assis: "Veja, considere, contemple". Era o que naquele momento se podia fazer.
 
             Vimos padres desconcertados, religiosas chorosas, leigos emocionados. Todos viam ao seu modo o corpo inerte e mumificado mas, agigantado na sua história. Certamente do lado de fora, um outro seu admirador podia novamente cantar e dar um novo sentido à sua própria música: "Estrelas mudam de lugar, chegam mais perto só pra ver e na grandeza desta hora, o amor espera pra nascer". Seguramente o amor ainda vai nascer no coração de muita gente que não a conheceu, mas vai ouvir dela falar.
 
         A grandeza do ser humano precisa ser restabelecida. Somente ícones como Irmã Dulce são capazes de fazer o ser humano enxergar no outro a si mesmo. O mundo precisa ainda dela, de seu exemplo, de seu amor, de sua doação.
 
         Ela saiu, sim. Para voltar de outro modo. O corpo tem o sentido da transcendência. Não mais o seu. Ela transcendeu vendo no corpo de cada pobre doente o próprio corpo de Cristo. Agora somos nós que precisamos. E como precisamos! Que ela nos ajude com seu angelical exemplo. Toque o si mesmo de cada um. Desperte o humano adormecido ou embrutecido. Acorde-nos para amar. Quem sabe assim a Bahia acorde melhor com baianos melhores.
 
           Seja louvada aquela noite. Seja bendito Aquele que a criou para amar. Seja tudo para maior honra e glória do seu vizinho que promete a quem fizer o bem a um dos pequeninos, um Eterno Bomfim.




‘frei José Ruy G. Lopes, da Ordem dos Menores Capuchinhos.