Cultura

O RENASCIMENTO E A CULTURA DESCARTÁVEL, POR MARCO GAVAZZA

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| 02/06/2010 às 09:00
A Mona Lisa não vai para o rádio de forma alguma
Foto: WORD PRESS
   O conteúdo dos meios de comunicação, em sua grande maioria, é intercambiável. Assim, uma notícia de jornal pode virar uma reportagem de televisão do mesmo modo que uma entrevista de rádio pode ir para as páginas de uma revista. A internet pode reunir tudo numa só página, com texto, áudio e vídeo.

  Embora cada veículo de comunicação tenha suas características próprias e que lhes confere maior velocidade ou maior capacidade de aprofundamento, criando assim preferências do consumidor de informações por este ou aquele recurso, a notícia cabe em qualquer um deles, adequando-se a forma e ajustando-se o conteúdo. Grandes corporações de mídia jornalística se utilizam de vários deles tentando assim manter a fidelidade do leitor e por conseqüência, a preferência dos anunciantes.

  A propaganda é capaz de aprofundar ainda mais essa maleabilidade da informação. O conteúdo de um comercial de televisão é ajustável à um outdoor ou um busdoor sem grandes dificuldades. Da mesma forma que pode migrar de um folheto para um jingle mantendo a mesma informação essencial.

   Entretanto, quando chegamos ao terreno da informação cultural ou artística, a coisa complica. A arte e a cultura não se vendem facilmente a qualquer suporte, como se existisse em sua inspiração, manifestação, expressão e conteúdo, um sistema autônomo de proteção.

   A Mona Lisa não vai para o rádio de forma alguma. Nenhuma escultura, seja de Miguelangelo Buonarotti ou de Alexander Calder, se transforma em novela. Um poema pode assumir a forma de uma letra de música, mas a melodia nunca estará impressa na capa do CD, pois que a única maneira seria usar a linguagem das partituras que é uma forma de expressão do autor e outros iniciados em música, mas não do ouvinte comum.

   O cinema é de todas as formas de transmissão de cultura e arte, a mais flexível. Ele tanto pode transformar em filme um livro quanto uma reportagem jornalística. O cinema vem ajustando à sua linguagem desde os relatos de sobreviventes de guerras até os contos de fadas e historinhas que ouvíamos de nossos avós e aqui não importa a idade de quem me lê: algumas destas histórias permanecem sendo transmitidas oralmente às criancinhas, não interessa quantas vezes os estúdios Disney as tenham filmado.

  Outras formas de expressão cultural permanecem eternamente preservadas para serem transmitidas verbalmente. A musiquinha "o sapo não lava o pé, não lava porque não quer, ele mora na lagoa, não lava o pé porque não quer" vem atravessando séculos vivendo apenas da desafinação e da paciência de pais e avós, sem qualquer suporte tecnológico.

  A palavra escrita transforma-se em imagem sem a mínima hesitação, desde a Bíblia até os desvarios cósmicos de Carl Sagan. Até a dança vai para o cinema, seja sob a forma dos antigos musicais ou através do talento de um Gene Kelly ou um Fred Astaire. Já o inverso é quase inexistente. Não tenho notícia de nenhum filme que tenha se transformado em livro. Ou que alguma novela da Globo tenha sido transformada em história em quadrinhos.

 O que se percebe neste panorama toscamente traçado aqui, é que na medida em que é maior o público a que se destina a mensagem, mais ela é ajustável aos diversos veículos capazes de transmitir informações. Provavelmente daí que na década de 60 do século passado, Marshall Mcluhan, primeiro estudioso de comunicação de massa, criou o conceito de que o meio é a mensagem. E foi mais longe ainda afirmando que eles são na verdade, extensões do homem. Estando certo Mcluhan, a televisão -e seu conteúdo- é a extensão de 150 milhões de brasileiros enquanto uma tela de Goya é a extensão de meia dúzia deles. Já as latas de sopa de Andy Wharrol estão espalhadas por aí sob a forma de posters, push pins, postais, chaveiros e diversos outros suportes não exatamente artísticos.

  Uma frase de Walter Clark, o homem que formatou a Rede Globo, criou truques para viciar o espectador como o "plim-plim" e eliminou o intervalo comercial "entre" um programa e outro para forçar o telespectador a manter-se sentado diante da telinha, confirma a teoria de Mcluhan: "Se a Globo deixar no ar, durante 15 minutos apenas o seu logotipo, ainda assim ele terá durante estes 15 minutos, a maior audiência da televisão brasileira". Na época isto era uma verdade matemática.

   A dessacralização da arte foi um processo que pareceu se intensificar a partir da evolução e diversificação dos veículos da comunicação. Camisetas tornaram-se suporte para frases famosas, reproduções de telas conhecidas e outros ícones da comunicação não imediata, representada por informações ocultas em mármore, têmpera ou acordes dissonantes.

  Mas, ao invés de manifestação artística pegar carona nas novas ferramentas de comunicação, ela em sua maioria permaneceu pouco acessível, fechada ao grande público e deu-se então o movimento contrário: a massificação da banalidade para ajudar a preencher o formidável espaço capaz de conter informações que se abriu a partir do final do século 20 e início deste.

  Toda esta busca de explicações para a divergência entre a riqueza de continentes e a pobreza de conteúdo, me veio ao pensamento ouvindo um comentário magnífico do nosso antropólogo Roberto Albergaria. A partir da demolição das barracas de praia da nossa orla, ele teceu toda a transformação da praia como cultura, como atitude e comportamento cultural urbano de convivência e reflexão, em produto exclusivamente de consumo. Aquele lugar onde antes se iam encontrar os amigos e conviver com a natureza -à espera que alguém passasse puxando um burro que carregava cocos em seus caçuás, protegidos do sol por palhas de coqueiro, para matar a sede- hoje se vai para beber muito álcool, ouvir músicas horripilantes e desafiar libidos.

   Todo este emaranhado de exemplos e raciocínios permite uma conclusão clara: quanto maior a variedade e quantidade de veículos de comunicação que surgem a cada dia, maior também o volume de idiotice necessário para preenchê-los. Diante disto, a arte como expressão menos descartável da extensão humana, se recolhe.