Cultura

"PRIMEIRO A SENTENÇA, DEPOIS O JULGAMENTO", POR MARCO GAVAZZA

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| 24/03/2010 às 09:10
Assim como aconteceu com Jesus, a multidão vai a Av. "Gógota" paulista
Foto: Terra

  Segundo as histórias contadas pela Bíblia, o governador romano de Jerusalém não achava Jesus uma grande ameaça e preferia ver pendurado numa cruz o tal Barrabás, um ladrão conhecido e suspeito de vários crimes. Mas a multidão já havia decidido pela culpa do Rei dos Judeus, como o apelidaram ou ele se auto-entitulou. A partir daí Pôncio Pilatos, o dito governador, lavou as mãos e disse que não tinha mais nada a ver com isso. Que matassem quem eles bem entendessem e o deixassem cuidar da segurança em Jerusalém, por favor. É certo que o acusado não abriu a boca em sua defesa. Também nem eram necessários poderes divinos para perceber que a coisa ali não tinha volta. O resto da história ou lenda, todo mundo conhece.

  A primeira pergunta que coloco aqui é: quem convenceu a multidão de que Jesus era culpado de crimes contra Roma? Não foi a TV, não foi a mídia impressa, não foi a internet. Mas algo ou alguém com forte poder de convencimento, entrou em cena para orquestrar a opinião pública. Pode ter sido um rabino decidido a ficar bem com César, pode ter sido um líder sindical revoltado porque Jesus expulsou a galera que vendia bugigangas no pátio do templo, pode ter sido qualquer coisa. O fato é que a turba estava predeterminada a condenar o acusado e já havia até se concentrado na trilha até o alto do Gólgota, monte onde se crucificavam dezenas de pessoas diariamente, para apreciar o cortejo e o espetáculo.

  Ou seja: a opinião pública é manipulável e isto vem sendo provado ao longo da história universal de diversas maneiras. Hitler sozinho convenceu uma nação inteira de que eles representavam uma raça superior e não seria nada demais incinerar judeus vivos. Aí ele já contou com algumas ferramentas da comunicação, tornando sua intenção mais bem apetrechada de recursos. Mais recentemente a mídia internacional, em especial a européia, andou catando um assassino para Lady Diana, que poderia ser o pai do seu namorado, o motorista bêbado, alguém a serviço de Sua Majestade, a Rainha ou qualquer outra hipotética figura, menos, é claro, o enxame de paparazzi que acabou forçando o excesso de velocidade dentro do túnel em Paris.

  Mais de meio século depois de Hitler e algumas décadas depois da princesa de Gales, os recursos da comunicação estão incrivelmente mais sofisticados, mais presentes e mais eficientes do que se poderia imaginar. E sem qualquer hesitação, sem medo de estar errado ou exagerando, vejo hoje como resultado da morte de uma criança de 5 anos, um júri no mais puro estilo BBB, que movimenta o país, abre todos os canais de comunicação, entope a internet de blogs e matérias apócrifas e é twitado até por um juiz de dentro do tribunal do júri, por pressão da imprensa.

  Antes do início do julgamento já havia uma multidão do lado de fora do tribunal exigindo as cabeças do casal acusado. Existem dezenas de milhões de "promotores" fazendo seus arrazoados de acusações pelo país afora e um inegável, incontestável e indiscutível clima de "já ganhamos", que no caso presente significa "já condenamos". Já devem haver trios elétricos prontos para comemorar nas ruas a esperada condenação. Não escrevo tudo isso para assumir qualquer opinião própria a respeito do que aconteceu naquela noite no edifício London, em São Paulo. Não sou irresponsável.

  Sherlock Holmes já teria respondido questões que não foram sequer levantadas, mas eu não sou inglês, não fumo cachimbo nem tenho um amigo chamado Watson. Sou um mero observador do comportamento das pessoas quando estas se relacionam com os meios de comunicação. O que vejo neste caso é a forte e incansável presença da mídia exercendo o papel da promotoria ao longo de dois anos e acima de tudo, como formadora de opinião, terminando por convencer a quase totalidade do país da culpa dos acusados, muito antes do julgamento.

  Em qualquer outra nação, este julgamento teria sido transferido para outro local e até mesmo realizado a portas fechadas. Não há isenção possível para os jurados depois de dois anos sendo convencidos pela imprensa e pela própria opinião pública de que os acusados são culpados. Eles não mais irão avaliar se isto é verdade ou não. Irão apenas concordar com tudo o que foi espetacularmente apresentado dia a dia, semana após semana, ano após ano, até chegarmos ao tribunal.

   Jamais ouvi falar que uma perícia num cenário de crime tenha sido tão filmada, fotografada, encenada, transformada em gráficos e transmitida para o país inteiro, tendo seus técnicos sido sistematicamente entrevistados e dado declarações minuciosas de como o crime foi praticado pelos suspeitos, hoje, réus. É inadmissível um cientista policial numa reportagem do Fantástico, mostrando detalhes e evidências recolhidas no local do crime, exibindo uma tesoura que supostamente teria sido usada para cortar a tela de proteção da janela e outros detalhes que no mundo inteiro, são extremamente sigilosos, até que a polícia tenha provas suficientes para prender um suspeito e permanecem sigilosos até o julgamento.

  Num circo como este que foi armado pela imprensa brasileira e que resultou no pré-convencimento de toda a opinião pública a respeito da culpa dos únicos suspeitos, qual o júri que teria coragem de absolvê-los, mesmo que estivesse convencido disso ao fim do julgamento? Teriam que necessariamente sair do país.

  Se pudéssemos por um instante deslocar o foco do julgamento dos acusados para a imprensa, perguntaria: é esse o papel da imprensa nacional? Abrir todos os espaços possíveis para que dezenas de pessoas ansiosas, ávidas, desesperadas por adquirir fama -coisa que virou uma espécie de mania entre os brasileiros- para que elas façam um trabalho compulsivo de construir uma opinião pública num episódio tão trágico?

  Não sou jornalista, com ou sem diploma. Sou um cidadão que aprendeu a lidar com as palavras, fez disso profissão e encontra espaço em alguns veículos de comunicação, assim como tantos esportistas, escritores, padres, músicos, astrólogos, mestres-cuca, estilistas etc. para expressar uma opinião sobre determinado assunto, no meu caso, a comunicação. Talvez por isso, por não sentir como muitos jornalistas sentem, a obrigação de "descobrir" a verdade ou algo próximo a ela e ir para a primeira página, eu esteja mais atento ao efeito que as minhas palavras, quando tornadas públicas, possam causar sobre vidas e reputações.

  Certa vez um PHD em comunicação disse numa palestra que se William Bonner nos instantes finais do Jornal Nacional, olhar fixamente para a câmera e disser com aquela expressão de Moisés descendo do monte Sinai: "Fulano de Tal, residente em Salvador na Bahia (pausa) é viado. Boa noite." No segundo seguinte o telefone tocará na casa de Fulano e ele ouvirá a voz chorosa da mãe dele do outro lado da linha dizendo: "Meu filho, você nunca me disse nada". E jamais Fulano conseguirá provar que não é viado.

  O título desta matéria resume com maestria o que tentei dizer aqui e prova mais uma vez que a vida imita a arte.