Cultura

MARX, A IDIOTIA RURAL E O BUCOLISMO, POR MARCOS GAVAZZA

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| 24/02/2010 às 08:16
O "Idiotia Rural" de Karl Marx tem todo sentido nos dias atuais
Foto: ILS
 

Durante o carnaval passei alguns dias em cidades do interior da Bahia, sempre atracado com um note book e um modem externo banda larga 3G. E de repente me vi questionando se a globalização é realmente um fenômeno mundial ou apenas mais uma commoditie das classes privilegiadas, seja geográfica, financeira, social ou intelectualmente. 


O ambiente e a estética rurais, mesmo em cidades de médio porte, guardam uma considerável distância daquilo que no resto do mundo é considerado atualidade, vanguarda ou media fashion. São costumes enraizados, preservados culturalmente e que a possibilidade de acesso em real time a outras culturas em nada alterou. 


Em Jequié, com um calor de 38° à noite, a extrema cordialidade daqueles que me hospedavam incluiu uma sopa bem quente antes do jantar.  São hábitos que atravessaram gerações e novas tecnologias, impassíveis às transformações. Coisas como criar passarinhos, passear na praça depois do jantar e cumprimentar desconhecidos na rua.


Sentado na praça em uma mesa ao ar livre para um merecido sorvete, cercado de dezenas de pessoas em outras mesas, não ouvi um único toque de celular durante horas seguidas. As vitrines das lojas exibem modelos prontos para saírem dali em direção a um baile dançante de debutantes, ao som de Renato e seus Bluecaps. Alguém lembra disso?  Nas ruas, percebe-se claramente pelas roupas quem está indo para algum lugar especial ou quem está apenas indo ao mercado.  A vanity fair passa ao largo de tudo isso.


Em Ilhéus, cidade grande, a coordenação espontânea entre carros, bicicletas e pedestres no meio das ruas desafia a teoria da lógica em movimentos aparentemente aleatórios e dos equilíbrios não-cooperativos, conhecida como o Equilíbrio de Nash.


O desfile de crianças saindo das padarias às 6 da tarde, cada qual carregando o saquinho de papel com os pães quentes é sagrado. A namorada de banho tomado, cabelo arrumado e visivelmente nervosa na porta de casa, desde as 5 da tarde esperando o namorado, também é infalível. Assim como o irmão pequeno que pouco antes das 10 da noite vem acabar com a alegria dos dois.


Claro que em todas estas cidades, nas casas a televisão está ligada. Qualquer casinha na beira da estrada exibe a sua parabólica espetada no telhado improvisado. São centenas delas enfileiradas na direção do poente. Dentro das casas a Rede Globo mostra em seu merchandising das novelas e nos comerciais o que há de mais recente em moda, decoração, veículos, produtos de consumo por impulso e liberdade sexual, mas aquilo é ficção, é uma realidade que não afeta o comportamento das pessoas que estão na sala depois que o aparelho é desligado.


Já nas lan houses, geralmente montadas onde era a garagem da casa e de layout absolutamente doméstico, jovens mais "globalizados" conversam pelo MSN, bisbilhotam o Orkut, fazem alguma pesquisa em grupo para trabalhos escolares ou gastam horas diante dos web games.


A comunicação publicitária ainda tem como mídia forte nestas cidades o carro de som, as faixas, as bicicletas sonorizadas, os cartazetes colados em postes.  As rádios se dedicam aos problemas da cidade e à política.  Os spots e jingles das lojas nelas veiculados, são uma extensão da linguagem das ruas, incluindo muitas vezes a voz do dono e anunciante.   


O distanciamento voluntário dos habitantes de cidades do interior dos hábitos comuns aos trituradores de gente que são as grandes metrópoles, longe de me parecer o que Marx cruelmente classificou de "idiotia rural" se assemelha a uma preservação espontânea de valores que ainda lhes garantem uma vida mais suave. É uma opção.  Eles sabem que através da internet podem ficar sabendo tudo que acontece ao redor do mundo. Mas não querem.


Se considerarmos que a periferia das grandes cidades também se mantêm afastada da globalização -aí por motivos diferentes, como ausência total de recursos, de educação e de informação- concluímos que ela, a globalização, é um fenômeno que alcança parte diminuta dos habitantes deste planeta. 


Poderia afirmar sem medo que mais de 80% da nossa população não faz a menor idéia de onde fica Detroit ou porque o Vale do Silício teve uma importância fundamental para que o século 21 seja como ele é. E  mais: que isto em nada reduz a sua qualidade de vida; ao contrário, preserva-a.


Globalizados somos eu e você que usamos a informação como moeda ou ferramenta de trabalho. Globalizados são os executivos que fazem suas reuniões on line, cada um distante do outros milhares de quilômetros. Globalizados são os administradores de multinacionais que precisam saber a variação do salário mínimo em Tijuana para manter o desempenho da empresa no positivo.  Globalizados são jornalistas, políticos, publicitários, chairmans e outros sérios candidatos a um enfarto ou um crise de estresse.


Evidentemente a globalização chega até essa massa, seja a porção periférica das grandes cidades ou a população rural, através de avanços tecnológicos. A própria parabólica que lhes permite assistir com som e imagem de qualidade o Domingão, foi um dos primeiros recursos utilizados na construção da aldeia global, dando finalmente uma utilidade doméstica aos satélites. O celular também está presente em suas vidas facilitando a comunicação quando não dá pra mandar um dos meninos levarem o recado até a tia que foi para a igreja. Os chips estão espalhados pelas casas, seja nos fornos micro ondas, no degelo automático do freezer ou na câmera fotográfica de 10 megapixels.


A diferença é que tudo isso chega até eles sem ocupar espaço em suas idéias, seu dia a dia e muito menos em seus projetos.  Essas coisas não são prioritárias e ninguém se dispõe -como eu você- a comprar na Submarino, através da internet,  um DVD player blue ray X endividando-se meses a fio.  Isto não faz parte das metas de consumo deles.  Se eu e você nos sentimos inseguros sem um pen drive no bolso, eles querem saber se a carne do sol que chegou no mercado está macia.


Talvez vá um pouco de exagero no que estou descrevendo, mas ele serve para deixar clara a minha constatação.  A globalização é uma realidade capaz de levar um tênis Nike a um garoto que mora em Uruçuca, mas que só está presente como tarefa cotidiana na vida de poucos. 


A "idiotia rural" de Marx, indignado porque os habitantes dos grotões da URSS estavam mais preocupado com a vodka que com as Pushka de 152mm é na verdade um bucolismo indestrutível de gente que não vê muito sentido em encher a cabeça de informações além daquelas que lhes permitem desfrutar a convivência da família, dos filhos, dos amigos, dos conhecidos, da natureza, da vida enfim.