Cultura

A PONTE PARA O PASSADO E A NOSTALGIA DE JOÃO UBALDO, POR MARCO GAVAZZA

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| 03/02/2010 às 09:00
Brooklin Bridge ligando o continente a ilha de Manhattan, NY, sem destruir patrimônio
Foto: Arquivo

Não acho que João Ubaldo Ribeiro tenha qualquer outro motivo, além da nostalgia, para estar tão trágico, dramático, melancólico e agarrado ao passado quando escreveu o choroso artigo "Adeus Itaparica" publicado recentemente no jornal A Tarde. A tentativa de ver o município de Itaparica como um santuário histórico ecológico me parece exagerada, já que existe muito pouco a preservar tanto alí quanto em toda a ilha. O que há de relevante, por exemplo, em Tairú?  


João Ubaldo desvia daqui e dali, se envolve no emaranhado das saudades, segue se equilibrando em memórias pessoais até se agarrar ao poste da preservação cultural e histórica, como se a ilha fosse uma espécie de Galápagos ou Creta baianas, quando na verdade só preocupa a ele realmente o município de Itaparica.


João Ubaldo é uma pessoa irrequieta e um escritor singular.  Nasceu em Itaparica, foi criado em Sergipe (há quem creia até hoje que ele seja sergipano, inclusive os próprios sergipanos) viveu em Salvador enquanto praticava a publicidade e a docência universitária como subsistência, até que os ventos do sucesso literário sopraram sobre ele, com a sutil colocação das velas na posição certa, feita por Jorge Amado.


Com vento pela popa, João navegou de volta a Itaparica onde se enfurnou num botequim durante o dia, na cama ao cair da noite e diante da máquina de escrever nas madrugadas, à espera de um novo dia.  Escreveu livros memoráveis como Sargento Getúlio e Setembro Não Tem Sentido. Escreveu coisas chatas, como O Sorriso do Lagarto.  Mudou-se para o Leblon, chamou Fernando Henrique Cardoso de sociólogo medíocre, escreveu Viva O Povo Brasileiro, apareceu de cuecas na capa da revista Caras. 


João tem o dom da visão irônica, do humor e da sátira. Não devia ter permitido que a vida lhe tirasse isso aos goles. João é brilhante quando mordaz, quando irreverente, quando cortante. Quando fala sério, João é chato. Para mim, Viva O Povo Brasileiro é um livro chato. O Sorriso do Lagarto é tão chato que nem a mais competente produção de TV conseguiu tornar agradável.  A crônica "Senhor Presidente", em que ele classifica FHC como sociólogo medíocre, independente de qualquer outra perspectiva, é chata. Vasculhar o labirinto da economia mundial para identificar o verdadeiro autor do plano Real, é muito chato. Comparar FHC a ACM foi chato para ambos.


Entre suas antigas e magníficas crônicas nas páginas do Jornal da Bahia do início de carreira e o fardão, muito de sua magia desapareceu misteriosamente, neste estranho Triangulo das Bermudas criado por João e formado por Salvador, Itaparica e Leblon.  


Numa das inesquecíveis crônicas no JBa. -olha que lá se vão mais de 30 anos e eu lembro perfeitamente dela- João já previa o travamento de Salvador, com um texto primoroso, no qual ele relatava um engarrafamento definitivo na cidade, gerado por um caminhão quebrado no Américo Simas,  uma batida de um táxi na Paciência, no Rio Vermelho e um terceiro acidente em local que não me recordo.  A partir daí, a crônica torna-se hilariante, pois João descreve como as pessoas presas no engarrafamento, ao perceber que ele seria eterno, passam a se comportar.  Enquanto uns abandonam os carros e vão embora, outros passam a morar neles. Criam-se "pontos comerciais" em alguns que começam a vender desde alimentos e bebidas até roupas, eletrodomésticos etc. Surgem pequenos "bairros" de carros engarrafados, as pessoas começam a conviver umas com as outras ali mesmo e Salvador se torna uma cidade sem trânsito, já que os carros se incorporaram aos imóveis. A crônica termina de forma brilhante, mostrando, tempos depois, arqueólogos desenterrando aquilo tudo e sem conseguir entender nada.


Ou seja, com o poder que possui toda mente privilegiada, João anteviu em décadas o estrangulamento de Salvador.  Mas agora ele acha que não devemos habitar a ilha, distante 12 ou 14 km bem à nossa frente, onde vivem 55 mil pessoas numa área de 148 km2.  Manhattan possui 54 km2 de área. Nela estão o Empire State, o Central Park e estavam as torres do World Trade Center. Salvador, abarrotada com 3,4 milhões de habitantes, possui 325 km2 de área. Porque João não protestou quando invadimos o litoral norte com condomínios fechados, resorts, lojas de materiais de construção, viadutos, pedágios, passagens de nível, pistas e pontes duplas, passarelas e outras intervenções consideradas como soluções, ainda que predatórias, para aliviar o crescimento galopante de Salvador?  Bom Despacho e 0 ferry por acaso são ecológicos? 


Mas, não me preocupa e nem estou aqui para defender -muito- a ponte, como também não estou aqui para contestar -demais- o escritor.  A ponte existirá apesar do choro e queiram ou não João Ubaldo Ribeiro e seus amigos intelectuais.  A ponte será feita, embora não agora. No momento ela será apenas um desenho garota-propaganda em ano de campanha eleitoral, mas é inevitável que mais dia menos dia ela exista e atravesse a Baía de Todos os Santos, fazendo Itaparica desafogar Salvador, assim como Niterói desafogou o Rio de Janeiro, Vila Velha desafogou Vitória e não faltam exemplos Brasil e mundo afora. 


Preservar o que houver para ser preservado em Vera Cruz, Itaparica, Cacha Prego, Ponta de Areia, Mar Grande ou lá o que for, é uma questão de levantamento histórico, ecológico, ambiental e planejamento.  Seriedade política e gestão rigorosa.  Se as empreiteiras vão ganhar dinheiro ou não, me parece ser o menor dos problemas que Salvador enfrenta.  O que não é mais possível é continuarmos nos amontoando em apartamentos de 60 m2, construindo em encostas como a Ladeira da Barra ou em "pirambeiras" como a Baixa do Tubo, disputando centímetro por centímetro um espaço para estacionar. Tudo isso terá que acabar e Itaparica é uma solução ainda possível de ser equacionada.  Ter essa possibilidade é um privilégio de poucos e ela será realidade.


Preocupa-me muito mais a intelectualidade que não revela novos intelectuais e só se comove emocionalmente, sem buscar soluções concretas para nossos problemas. Preocupa-me a intelectualidade que usa seu poder sobre as palavras, para emocionar os leitores sem se envolver, sem lhes apresentar qualquer sugestão, visão alternativa, proposta concreta diante de um crescimento urbano visível e que bate nas nossas portas e janelas a cada minuto, com todos os seus problemas, seu sufoco, sua insegurança. 


Preocupa-me o pensador que não vai além da chantagem emocional e do exagero. Assusta-me esta intelectualidade brasileira, que não é capaz de apresentar um pensamento orientador, de provocar discussões, de formar opinião. A intelectualidade brasileira que adora posar de vítima. Assusta-me a quantidade de órfãos de 64. Compositores que só sabiam compor canções de protesto, autores que só escreviam enquanto torturados, humoristas que sem a censura perderam a graça.


Tirando um ou outro aqui e ali, todos ficaram calados ou chatos, muito chatos. Já que decidiram aposentar a sua participação ativa também como cidadãos, que fiquem em suas cadeiras de balanço. Toda essa postura de pensador ferido e magoado, além de não contribuir em nada para o povo brasileiro, é muito chata.