Cultura

MOQUECA DE BACALHAU COM MANDIOCA E A BAIANIDADE, POR MARCO GAVAZZA

Vide
| 06/01/2010 às 10:28
Cada povo tem uma cultura e comportamento próprios. O mais é taxanidade.
Foto: BJÁ
 1. Passei o primeiro fim de semana de 2010 dedicado à leitura pelo método analógico, digamos assim.  Palavras impressas com tinta sobre papel.  Encarei as 607 páginas de A Menina Que Brincava Com Fogo, volume 2 da trilogia Milennium, do sueco Stieg Larsson, que morreu pouco depois de entregar os originais à editora.

    Não viu publicado seu trabalho que já vendeu 15 milhões de exemplares.  O sucesso da obra está na narrativa absolutamente magnética de Larsson e em sua surpreendente heroína Lisbeth Salander, uma mulher de 26 anos, com aparência de 14, que passou 15 anos de sua vida em instituições psiquiátricas e sendo sistematicamente violentada. 

   Sem qualquer vestígio de atributos sensuais ou marciais, Lisbeth atropela tudo que se opõe aos seus interesses com uma inteligência notável e a qualificação de uma das melhores hackers do mundo.  Percebi o quão distante estou de ser um criador de textos tão cativantes quanto Larsson e quanta determinação me falta para enfrentar obstáculos com o código de ética que cada um deles merece,  como Lisbeth. 


   2. Li Os Anos 00, um estudo da primeira década do Século 21 publicado pela Editora Globo/Revista Época.  Nele, Osama Bin Laden é apontado como o homem que definiu os contornos da década logo no seu começo, ao mostrar a vulnerabilidade norte-americana e o tamanho do ódio que este país conquistou ao longo da história, do tempo, de suas intervenções militares e econômicas.  Sua ação terrorista exibiu as vísceras, desequilibrou o american way of life e o resultado foi muito pouco parecido com o heroísmo sempre apresentado por Hollywood.

   Ao mesmo tempo, mostrou que US$ 25 milhões de recompensa não são suficientes para que um só oriental aponte com o dedo uma montanha ou simples caverna do Afeganistão, onde Laden possa estar.  Fosse Bush o procurado e haveria filas gigantescas de informantes frente ao prédio do FBI.  Percebi que -pouco importa a ideologia ou a verdade de cada um- a lealdade a alguém ou a alguma crença só se reveste de sentido depois que o Alguém ou a Crença se revela capaz de demonstrar primeiro sua própria lealdade ao grupo. Não serve pra nada gritar "eu sou o bom, o melhor" para espantar fantasmas. É preciso ação para entrar na história sem uma câmera por perto.


   3. Li também, chegando mais próximo do nosso universo, uma longa matéria na revista Muito do jornal A Tarde sobre a baianidade.  Depoimentos de populares, teses de diplomados em diversas áreas, sobrevôos nas origens da nossa cultura e tentativas de extrair o seu DNA.  Exemplos de autênticos baianos, como Gregório de Mattos e Dorival Caymmi e também de baianidades clássicas como dançar no meio da rua, jogar capoeira ou ficar deitado na rede esperando o coco cair.  Esqueceram o mijar nas calçadas como exemplo de baianidade ou talvez isso não seja assim classificado.  Desta leitura percebi como pode ser dolorosa e profunda a saudade de um tempo melhor. 


   A chamada baianidade continua sendo uma coisa absolutamente vaga, uma espécie de ectoplasma ou então -para alguns- uma jogada meramente midiática construída pelo carlismo e pela revista Viver Bahia com o "sórdido" objetivo de atrair turistas para cá. Na tentativa de explicar a tal baianidade a matéria chega a comparar Salvador com Paris, sugerindo que existe por lá uma também inexplicável parisidade.   

  Creio na baianidade tanto quanto creio na texanidade, na portugalidade, na autralianidade ou em qualquer outro neologismo que possamos criar para nos referirmos ao modo de ser e à cultura da cada povo, cada grupo social-geográfico. O que não é uma exclusividade de povo algum. Todos têm a sua cultura e o seu comportamento próprios.  O gaúcho, o carioca, o mineiro e o paulista são exemplos claros dentro do Brasil de identidade cultural e de comportamento. Uns alegres, outros nem tanto, mas sempre únicos. Creio que a busca da baianidade hoje, como um diferencial inexplicável, nada mais é que uma profunda nostalgia de uma época que passou, quando tínhamos realmente uma identidade e esta possuía sonoridade nacional. 


  Gregório de Mattos e Caymmi representam a baianidade na matéria porque assim como centenas de outras personalidades baianas, pensavam, questionavam, propunham, criavam e inovavam.  E isso acabou.  As últimas coisas inteligentes que a Bahia ofereceu ao Brasil saíram de cabeças que hoje beiram ou já passaram dos 70 anos, que cansaram da pressão exercida pela mediocridade que se seguiu. Tornaram-se personalidades multinacionais ou reclusas, ainda que sem perder a formação cultural baiana.


  Ser preguiçoso, lascivo, festeiro, bem humorado, prestativo, conviver em respeito com qualquer religião, ter um dialeto próprio e outras características -reais ou atribuídas- que formaram a identidade baiana, somente alcançaram o plano do conhecimento nacional porque os antigos olhos do Brasil olhavam para a Bahia com certa inveja.  Como podia um estado pobre do nordeste produzir tanta genialidade? 


   Foi observando Gregório de Mattos e Caymmi, além de Ruy, Castro Alves, Ernesto Simões Filho, Otávio Mangabeira, Mestre Didi, D. Augusto Cardeal da Silva, Menininha do Gantois, Nelson Carneiro, Bina Foniat; antes de Jorge Amado, Mario Cravo, Carybé, Garlos Bastos, Glauber; seguidos de Roberto Pires, João Gilberto, Raul Seixas, Caetano, Gil, Wally Salomão, Capinam, Bethânia, Gal, João Ubaldo, Brown, Margareth Menezes e tantos outros que o Brasil descobriu a Bahia e as características de quem vivia aqui, longe dos spotlights, mas com a mesma criatividade, a mesma fé dual e visão pragmática dos mistérios da vida.  O Guarda Pelé, a Mulher de Roxo, Sandoval do Varandá, Chocolate da Bahia, Odete do Prato, Leonel do Bargaço e muitos, muitos outros, mesmo distantes da intelectualidade seguiram fazendo a Bahia inundar o Brasil de "baianidade".  Isso também acabou.


  Hoje se inverteu o quadro. Não há mais genialidade alguma e o crescimento urbano desordenado e injusto, a luta por um emprego, obriga o baiano a acordar às 4 da manhã, enfrentar vários ônibus lotados, trabalhar o dia inteiro e voltar pra casa a tempo de ver a novela das 8 antes de desabar.  Ou arrastar caixas de isopor com picolés e CD's piratas na areia quente e sob um sol implacável. 


A baianidade para mim nunca foi algo de extraordinário, mas um jeito de ser específico, resultante de matrizes raciais e culturais muito diversas, aliadas a uma criatividade que parecia inesgotável.  Hoje a busca da baianidade ou de sua explicação soa como um lamento, um canto chorado por um passado e um tempo perdidos para sempre.  Para definir esta baianidade de forma mais coloquial, uso as palavras de Marcos Xarope, músico e um dos entrevistados da Muito:  "A gente procura trazer felicidade de onde não tem".