Cultura

MÃOS AO ALTO. ISTO É UM COMERCIAL MEU CARO, POR MARCO GAVAZZA

Veja
| 16/12/2009 às 08:16
O poder da tentação e a resistência do homem
Foto: Wordpress

A violência e falta de segurança crescentes são assuntos recorrentes na mídia diária, seja local ou nacional. Busca-se aqui e ali fatores que possam influir no aumento desta violência e o leque vai desde a falta de educação doméstica, familiar, fundamental, ética, religiosa e até a certeza da impunidade. É óbvio que a violência possui muito mais que um ou dois fatores capazes de disparar o processo que leva uma pessoa a roubar, assaltar e se necessário, matar.  Aí me pergunto com um frio na espinha: a propaganda também contribui para a violência?


Eu sou uma pessoa controlada em relação a despesas pessoais, gastos com supérfluos e coisas do gênero, priorizando sempre meus recursos para as obrigações e as compras indispensáveis. Muito raramente faço uma compra por impulso. Além disso, sou publicitário há tempo suficiente para conhecer todos os truques e artimanhas da propaganda, capaz de tornar um saca-rolha de ar comprimido numa necessidade inadiável.


Porém, mesmo tendo essa característica pessoal e esta experiência profissional, de vez em quando me bate aquela vontade de entrar numa concessionária de veículos e comprar um Chrysler Cruiser zerinho, deixando pra trás o meu Popular 1.0 básico.  Ou comprar uma casa num belo condomínio fechado próximo à praia, curtir o mar da janela e esquecer da vida. 


Imagino então o poder de convencimento que a propaganda pode exercer sobre pessoas não tão controladas quanto eu e menos atentas à magia da propaganda.  Acredito que boa parte dela acaba por se endividar comprando coisas que na realidade não precisa ou que poderiam esperar um momento mais adequado.


Gente que anda com o bolso repleto de cartões de crédito e que vive traçando frágeis estratégias que possam ser capazes de cobrir um santo sem descobrir o outro. Gente que não consegue entrar num shopping e sair dele sem uma sacola na mão, não recusa uma oferta de marketing direto e por aí vai, com o salário cada vez mais curto.


Quando transferimos este raciocínio e este padrão de comportamento para aquelas classes em que um potinho de iogurte é um luxo quase inalcançável, sou obrigado a achar possível que a propaganda contribua para a violência que cresce como erva daninha e ameaça a todos nós.


Uma das primeiras campanhas "pesadas" que enfrentei como publicitário foi para a  Editora Abril. Ela havia detectado através de pesquisas que 96% do público de televisão aberta era composto pelas classes C e D.  Assim, queria uma campanha para convencer anunciantes de produtos sofisticados e exclusivos, a anunciar em revistas -da Abril, claro- pois estas atingiam quase exclusivamente os públicos A e B.


De lá para cá, a classe B migrou para a televisão, não porque esta tenha oferecido qualquer atrativo maior, mas sim porque o grupo social perdeu poder aquisitivo suficiente para praticar o lazer constante fora de casa e acabou por também passar a noite no sofá diante da telinha.  No máximo comendo uma pizza comprada na padaria.


Assim, com uma população em que cerca de 85% possui rendimento na linha do salário mínimo -ou daí para baixo- e níveis de educação e consciência bastante reduzidos, um comercial de televisão mostrando que homem nenhum vai olhar para os pés de uma mulher -imagine o resto- se eles não estiverem calçados em sandálias  Beyoncé, pode causar um bom estrago.


Assim como um outro comercial  pode convencer você de que irá comer as mais lindas mulheres possíveis,  desde que beba a cerveja Espuma Prime. Ambos irão provocar uma compulsão espontânea que atravessa o consciente como uma flecha, indo cravar-se na mosca -azul- do subconsciente.  Aí, como diria o erudito Presidente Lula, a merda está feita.


E notem que os exemplos que citei, são de coisas simples, banais como uma sandália e uma cerveja. Quando subimos o nível do que é apresentado como "indispensável" à vida moderna a coisa fica mais perigosa, especialmente para os jovens e os mais carentes socialmente. Mais impulsivos, "corajosos"  e sem qualquer vestígio de ensinamentos a respeito de direitos, deveres, cidadania e respeito à propriedade, eles se lançam à aventura de correr atrás do que é moda, da capacidade de conquistar e da fama.


Para chegar perto do charme, do glamour e da moda exibida nos comerciais e também no merchandising das novelas e outros programas de televisão (por exemplo), que por sua vez estão aliados à permissividade e exposição sexual que correm soltas, meninos e meninas podem achar natural prostituírem-se para alcançar seus objetos de desejo no consumo. Esta forma de conseguir recursos financeiros é uma porta aberta para as drogas e todo o mundo de figurantes que compõem o universo marginal e aquilo que vem em seguida. 


Quando uma quadrilha organizada explode um carro forte em busca de malotes repletos de dinheiro, ela pode estar agindo com uma motivação "empresarial" digamos assim. Levantando fundos para compra de drogas ou armas que serão passadas a um comerciante especializado da área e daí para o varejo do crime. São profissionais que se apóiam na impunidade para seguir em frente. Sua motivação pode ser desde genética até sócio-ambiental.  Isso já foi feito até com motivação política, por universitários, para levantar fundos destinados a combater governos totalitários.


Um bandido sozinho pode roubar um carro para com ele praticar alguns assaltos e com a grana melhorar o seu padrão de vida, coisa que ele sabe ser praticamente impossível com o trabalho assalariado, para quem tem pouca ou nenhuma instrução.  Se for necessário matar alguém no meio do caminho, ele não hesitará.


Mas, quando alguém assalta uma criança para roubar um tênis Misuno, está praticando uma violência que sem dúvida nenhuma, tem o componente publicitário entre os seus estímulos.  Quando alguém rouba um IPhone  e desbloqueia para uso próprio, aí tem o dedo do marketing e do merchandising estimulando o ladrão. 


É muito complicado dimensionar corretamente a participação da propaganda, uma atividade essencialmente capitalista, nas estatísticas da violência em sistemas capitalistas de estado, sociais democratas sem distribuição de renda, repúblicas assistencialistas e outras variantes que incluem tudo, menos o acesso da maioria ao poder aquisitivo.


Evidentemente não existem estudos sobre isso e assim, nenhuma possibilidade estatística. Mas cada vez que ouço a notícia de que alguém foi assaltado, tomou uma porretada na cabeça e levaram o seu Dell,  me vem um gosto amargo na boca, uma sensação de que a propaganda, em algum momento,  murmurou no ouvido de  um jovem ambicioso e carente: "E você? Não vai conseguir nunca o seu note book?"