Cultura

TRÊS BONS MOTIVOS PARA NÃO FALAR DE PROPAGANDA, POR MARCO GAVAZZA

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| 04/11/2009 às 07:12
Mostra Sophie Calle é gigantesca demonstração de hipocrisia humana
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MOTIVO UM:


Neste último feriadão que assolou o país, contribuindo para infernizar ainda mais as estradas e as estatísticas, fui ver a exposição "Cuide de Você" de Sophie Calle, no MAM. 


A mostra é uma gigantesca demonstração da hipocrisia humana.  A partir de uma carta que recebeu encerrando uma relação amorosa, a escritora francesa que dá nome à exposição, criou um painel gigantesco de manifestações teóricas e vazias a respeito deste um fato íntimo.


A carta por ela recebida é em si uma revelação da frustração sentida por um homem ao ver que o amor imaginado como um caminho para a paz e o sossego, não lhe trouxe nada disso e assim encerrava ali o relacionamento, para não desrespeitar a amante.


Gentil, carinhosa, em certos momentos admitindo suas falhas, o autor conclui o romance e a carta afirmando que nunca irá deixar de amar a destinatária e que lamenta não poder continuar sendo seu amigo, já que esta era uma pré-condição estabelecida por ela. A carta é um pedaço dos sentimentos de alguém colocado no papel.


Ninguém sabe o que se passou entre Sophie e o Sr. X, como é chamado o autor da carta.  Mas a exposição mostra a conseqüência das palavras escritas pelo Sr. X: ao redor do mundo ele está sendo exposto como um canalha.  A autora da exposição pediu a 107 mulheres de diferentes profissões -nem um único homem- que interpretassem a carta, já que ela própria não conseguia faze-lo. 


Isto resultou em quase uma centena de manifestações herméticas, primárias ou visivelmente tendenciosas, escritas por pessoas com pendências no setor afetivo.  Uma advogada afirma que o ato do Sr. X ao encerrar o relacionamento, pode ser enquadrado num dos artigos do Código Civil francês, cabendo um processo contra ele e que ela está à disposição para realizar este "trabalho" caso seja do interesse de Sophie.  Este é só um dos exemplos de hipocrisia.


Apenas uma meia dúzia das respostas recebidas possui força para escapar da mesmice repetitiva que a hipocrisia provoca. Uma criança de nove anos simplesmente tenta interpretar os fatos e conclui dizendo "c'est triste".  Uma jornalista explica que não vê naquela carta qualquer coisa que possa interessar a alguém além do remetente e da destinatária. A mãe da autoproclamada vítima, Sophie, procura mostrar-lhe que a carta chegada às suas mãos é uma prova de dignidade e -além disso- ser a vida assim mesmo; feita de amores e desamores, ilusões e desilusões, começos e fins. 


MOTIVO DOIS:


Gosto muito, muito a ponto de te-lo sempre comigo, de um texto de Paulo Mendes Campos, intitulado "O Amor Acaba".  Ei-lo na íntegra:


E o amor acaba numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio.

E acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro, como dois polvos de solidão, como se as mãos soubessem que o amor tinha acabado.

E acaba o amor nas sorveterias, diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos. Mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia.

E o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir. Em cavernas de quarto e sala conjugados, o amor se eriça e morre.

Quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar.

Uma carta que chegou antes, o amor acaba; uma carta que chegou depois.

Às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes. E às vezes acaba em ouro e diamantes, dispersado entre astros. E acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres e Nova York. E acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo.

Às vezes acaba como se fora melhor nunca ter existido.

Em todos os lugares o amor acaba, a qualquer hora o amor acaba, por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto, o amor, acaba.


A impermanência de qualquer coisa, incluindo-se aí o amor, é uma das poucas verdades inatacáveis, já que todas as verdades existentes são muito relativas, possuindo faces diversas dependendo do ponto de vista de quem está envolvido com elas. Até certas verdades científicas deixam de ser definitivas com o passar do tempo e vem sendo assim desde que Galileu revelou que não era verdade ser a Terra o centro do universo. 


A minha verdade pode não ser a sua verdade, assim como a verdade de Sophie certamente não é a verdade do Sr. X e muito menos aquelas 107 opiniões são qualquer tipo de verdade.  Tentar convencer você com minhas palavras de que isto ou aquilo é melhor desta ou daquela forma, é uma maneira eficiente apenas para criar energias conflitantes.  Tudo o mais nunca sairá do plano da interpretação.


MOTIVO TRÊS:


Semana passada Millôr Fernandes postou no Twitter uma frase que foi replicada em inúmeros sites e blogs por este país: "Precisamos urgentemente de um código de antiética.".


Mais uma vez nosso pensador oficial está certo.  Abandonamos a ética nos seus mais diversos aspectos, desde o médico que só receita medicamentos de determinado laboratório até o cidadão comum que paga por um lugar na frente das filas.  E se perdemos a noção da ética, a falta dela ficou nebulosa, volátil e maleável, defensável pelos que possuem habilidade com a dialética até tornar-se uma nova ética.  Difícil, portanto encontrar o caminho das pedras quando elas se tornaram móveis.  Quem sabe na próxima semana a propaganda mereça mais espaço que esta sensação de inutilidade?