Cultura

X CAPÍTULO DA NOVELA "MANHATTAN É LOGO ALI", POR MARCO GAVAZZA

Vide
| 31/10/2009 às 22:28
Drama no final da Novela "Manhattan é Logo Alí"
Foto: mg

Capítulo X: Noite de 3 de Julho de 1928. Uma casa em algum lugar do Queens, NY. 

O dia de trabalho na véspera do feriado terminou sem novidades. As pessoas pareciam apressadas, como se todos estivessem prontos para começar logo as comemorações do Independence Day ou para descansar um pouco daquela correria eterna de New York.  Todos andavam muito tensos ultimamente, como pardais antes de uma tempestade. Pareciam adivinhar que algo de grave estava para acontecer. Talvez a Casa Branca entendesse de enviar tropas para alguma outra guerra ou coisa assim.

  

Cada vez mais dedicado ao seu projeto de tornar-se um escritor de histórias infantis, Alfie prestava pouca atenção aos comentários sobre negócios e finanças. Durante alguns dias substituira um dos ascensoristas que ficara doente, escutando então frases soltas, palavras sussurradas e expressões preocupadas entre as centenas de homens de negócios que entravam e saiam do Woolworth por hora. Nada que ele entendesse, mas podia perceber que o clima era de apreensão.

  

Sua vida seguia uma previsível rotina, embora isto não o atormentasse. As investigações sobre o assassinato de Owen não chegaram a nada concreto. Nenhuma ligação com a Máfia, nenhum inimigo além dos que lhe determinara a guerra, nenhuma mulher em sua vida, nenhum homem traído, nada que pudesse levar a alguém ou algum motivo para o crime. A arma não fora identificada, ninguém se beneficiara diretamente com sua morte ou levantara qualquer hipótese.  Owen morreu sem deixar pistas.

  

Alfie descobrira em Sidney Cadman, seu novo chefe, um sujeito simpático e bondoso, como certamente seria um amigo do saudoso Bill Warthon. Contara-lhe o seu projeto e de vez em quando Sidney aparecia com um ou outro livro de histórias dos seus netos, para que Alfie lesse. Os cadernos se acumulavam sobre uma pequena mesa de trabalho na casa do Bronx, cheios de anotações e idéias para começar uma história.

  

Mas Alfie relutava em fazê-lo, por insegurança e medo. Alfie tinha um componente da sua personalidade que é extremamente perigoso: o medo de errar. Não admitir a possibilidade de errar é paralisar a vida. A capacidade de absorver as conseqüências dos erros cometidos é que nos impulsiona para novas tentativas, que sempre acabam um dia por serem bem sucedidas. Adiar indefinidamente uma ação por medo de errar, termina por levar-nos ao estado de angústia, pois o desejo de realizar permanece embora sufocado, represado além do tempo apenas necessário à preparação natural do movimento.


Alfie começava a sentir esta angustia crescente e isto o incomodava. Há quase um ano vinha lendo, estudando e anotando coisas. Neste tempo chegou a desenvolver bastante sua intimidade com a linguagem escrita e agora lia com facilidade e articulava bem suas frases.

  

Mas a história não saia do pensamento para os cadernos.

  

Alfie decidira que naquele feriado de 4 de julho iria começar a escrever de qualquer forma. Iria tentar dar forma a uma de suas idéias, que era a história de uma nota musical que nunca fora tocada por ninguém e vivia esperando o momento de ser descoberta por um garoto que estudava piano, mas não gostava de fazê-lo e assim despertar-lhe o gosto pela música. Podia dar certo.

  

Superar o medo de errar seria o primeiro passo no sentido de começar a acertar, pois o erro é uma questão de julgamento, enquanto a ação é a própria vida desenvolvendo-se.  Jamais se chegará à energia plena ou a qualquer lugar ou objetivo, sem caminhar, ainda que tropeçando de vez em quando.

  

Por isso provavelmente Alfie também se sentia tenso. Durante todo o dia não percebera que aguardava também ansiosamente o momento de pegar o metrô até a Grand Central e de lá o trem até Queens, para chegar a sua casa e começar a escrever.

  

Durante o intervalo para o almoço fora até o banco depositar um pouco de dinheiro na conta de Rose Helen, como fazia todo início de mês. Isto também contribuiu para deixá-lo tenso. Embora o passado já estivesse tão sepultado quanto Owen, Alfie não deixava de pensar em Rose Helen e de imaginar o que estaria ela fazendo para melhorar um pouco a própria vida. Os dias em que ia ao banco depositar dinheiro para ela intensificavam estes pensamentos e em alguns deles Alfie chegou a pensar em procurá-la, mas sempre desistia em seguida, num instinto natural de preservação. Sua vida agora preservava a sua serenidade, embora se sentisse só. A motivação que experimentava com a leitura e o projeto das histórinhas ajudava a afastar a solidão, mas de vez em quando ela aparecia nas madrugadas, no metrô, diante de um cinema, nas manhãs de domingo ou até mesmo no metrô, indo ou voltando de casa.

  

Agora, arrumando suas coisas para deixar o Woolworth e ir para casa, Alfie pensava em tudo isso de forma superficial, sem pretender tirar qualquer conclusão. Apenas registrava tudo o que envolvia a simplicidade dos seus dias e de si próprio.

  

Guardou seus objetos na gaveta, foi até o vestiário, onde tirou a farda e vestiu o velho terno marrom, que precisava de alguns pontos de costura nas dobras do joelho e dos cotovelos. Lembrou de Rose Helen mais uma vez. Não conseguia imagina-la diante de uma máquina de costuras, sem qualquer outra atividade, além disso. Será que ainda cantava, ao menos na igreja?

  

A noite descera sobre Manhattan quando Alfie seguiu pela Broadway rumo à estação do metrô.

  

Os letreiros luminosos lançavam cores incontáveis sobre as pessoas que passavam rumo a Times Square, aos teatros, aos night clubs, aos musicais, aos bares e à boemia. Coloriam também os que se apressavam em seus carros rumo ao Holland Tunnel, ou andando em direção ao metrô, aos ônibus, aos táxis.

  

Chegar ou sair de Manhattan parecia sempre ser acompanhado por alegorias e cenários especiais, como se uma peça estreasse a cada vez que alguém pisava suas calçadas. New York fervilhava como se o mundo girasse em torno dela e não do Sol. O que talvez até fosse verdade, pensando bem. 


Um carro de polícia passou lentamente, saindo da Barclay St. e Alfie imaginou Dashiel Hammett dentro dele, conversando alegremente com os tiras. Sorriu intimamente com a própria idéia e seguiu em frente, imaginando que nenhuma das pessoas que passavam por ele poderia imaginar que durante toda uma tarde ele estivera conversando com o famoso escritor. Isso depois de terem vindo juntos desde o Paramount Studio até Greenwich Vilage, no carro com Gloria Swanson. A vida era realmente surpreendente, pensava Alfie enquanto desaparecia pelas escadas que levavam até a plataforma do metrô.

  

Acomodado num dos vagões, correndo pelo subsolo da cidade, Alfie só estava em New York por pensar nela. Alí dentro dos trens que corriam pelos túneis, não se estava em lugar algum. Na Grand Central Alfie voltou a New York e sua incessante atividade, vendo-a passar rapidamente pela janela do trem. Desceu no Queens e seguiu a pé pelo trecho final até sua casa, parando apenas para comprar um sanduíche.

  

Já se sentindo bastante relaxado e pensando apenas na sua história, que realmente iria começar a escrever, Alfie chegou até o pequeno sobrado, percebendo que a luz da sala estava acesa. Provavelmente esquecera-se de apagá-la ao sair para o trabalho de manhã cedinho, ainda escuro. Alfie cumprimentou Silvia Gray, sua vigilante vizinha, sem perceber que ela o observava com inexplicada curiosidade.

  

Abriu a porta da casa e entrou.

  

No centro da pequena sala, de pé em frente a ele, estava Emmily Rose Saint Helen Powell.

  

Ou simplesmente, Rose Helen. 

  

Alfie custou a acreditar no que estava enxergando. Em sua própria casa, surgindo do nada após alguns anos, trazendo imediatamente de volta um passado que ele custara a superar, Rose Helen. Vestindo o mesmo vestido preto da noite de Natal de 1922, um sorriso irônico já conhecido nos lábios e uma garrafa de vinho na mão direita.

  

Ela caminhou lentamente até ele, beijou-o na face e explicou que convencera Silvia Gray a abrir a porta da casa, dizendo-lhe ser uma irmã de Alfie que chegara de Kansas City e queria surpreendê-lo. Puxou-o pela mão até a pequena cozinha, onde abriu a garrafa de vinho, serviu dois copos e começou a falar compulsivamente.

  

Misturava passado e presente, o jazz com a reclusão e a máquina de costura, as noites do Harlem com os dias monótonos da solidão, projetos inacabados e sonhos não começados, o casamento desfeito e a saudade incontrolável.

  

Rose Helen parecia querer recompor em alguns minutos os últimos 10 anos de sua vida, emocionando-se com algumas lembranças, sorrindo nervosamente com outras, enquanto Alfie lentamente se refazia do susto e da surpresa, passando aos poucos a participar do momento inesperado.

   

Fez perguntas a respeito de como andava a sua vida, quis saber por que ela resolvera procura-lo e como o encontrara, respondeu as perguntas de Rose Helen e acabou voltando ao tempo do apartamento nº 200 da W135 St., quando as noites pareciam pequenas para tanto assunto que havia entre eles. Em determinado instante chegou a sentir vontade de preparar um prato de feijões com costeletas de porco, folhas de hortelã e bananas. A garrafa de vinho lentamente esvaziava, enquanto Rose Helen e Alfie conversavam de forma cada vez mais animada e envolvente.

  

Alfie contou-lhe do crime no Woolworth, de seu interesse repentino por histórias policiais. Contou-lhe seus encontros com o escritor famoso e a estonteante atriz, de sua decisão de tentar escrever histórias infantis, das noites dedicadas a estudar e a escrever frases em seus cadernos. Contou-lhe em detalhes suas pesquisas para tentar encontrar um tema para sua tentativa de escrever, até que finalmente decidira-se pela história da nota musical. Rose Helen aproveitou a oportunidade para falar da música, tanto no passado quanto no presente, desde a frustrada temporada no YMCA até o coro na missa gospels aos domingos.

  

A garrafa de vinho já estava vazia quando Alfie interrompeu a conversa tomando-a pela mão e levando-a escada acima até o quarto. Despiu-a lentamente admirando o mesmo corpo firme e ardente que tantas vezes tivera em seus braços. Amaram-se com o mesmo entusiasmo de antes e com a sofreguidão que o tempo e o desejo costumam criar. Tantas vezes e tanto que a madrugada começou ameaçar trazer a manhã. Era como se a noite tivesse começado em 1920 e só agora estivesse por acabar.

  

Relaxado e sentindo-se feliz, Alfie levantara-se da cama por um instante e fora até a pequena mesa de trabalho. Pretendia pegar um dos cadernos com os manuscritos e mostrar a Rose Helen, pois no fundo sentia-se orgulhoso do seu progresso com as letras. Acabara de abrir a gaveta, quando ouviu por trás de si a voz de Rose Helen, que falava mansamente:


Amor, que tal se a gente voltasse a morar juntos no Harlem e tentar novamente o jazz? Quem está mandando lá agora é a turma de Manhattan, e você sabe, Manhattan é logo...


Ao lado do primeiro caderno dentro da gaveta que Alfie acabara de abrir, estava um revolver calibre 38, que ele havia comprado logo depois de Owen assumir o cargo de chefe dos porteiros no Woolworth.

  

Uma única bala interrompeu a frase de Rose Helen, acabou sua vida e encerrou definitivamente sua carreira, jamais iniciada.


  

                                                     FIM