Cultura

CAPÍTULO IX DA NOVELA "MANHATTAN É LOGO ALÍ", POR MARCO GAVAZZA

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| 25/10/2009 às 08:11
Alfie vai se aproximar de James Baldwin
Foto: MC

CAP. 9

  

10 de agosto de 1927, Bronx Zoo, Bronx.


A estréia do primeiro filme falado da história do cinema foi uma decepção para Alfie. Após enfrentar 16 horas de espera e uma multidão que se acotovelava diante do Public Theater no East Village, ele conseguira ficar numa das primeiras filas reservadas ao público. Porque além da multidão de curiosos, os mais importantes nomes do cinema de New York estavam presentes. Mas o que Alfie viu na tela em O Cantor de Jazz, foram cinco ou seis canções interpretadas por Al Jolson, pintado de preto, num som horroroso. Mais nada.

  

Isto foi o suficiente para ele ter certeza de que o cinema falado não daria certo, que a história interpretada a partir dos resumos escritos em cada abertura de cena e o apoio da imaginação iram continuar sendo o verdadeiro cinema; e para decidir-se a por em prática uma idéia atrevida que vinha piscando em seu pensamento desde aquele dia em que ficara uma tarde inteira conversando com Dashiell Hammett: escrever histórias infantis.

  

Alfie ficara fascinado com o universo da ficção, o mundo mágico criado a partir da observação do cotidiano e da imaginação. Dedicara-se cada vez mais a ler, não mais se limitando às histórias policiais de Hammett e outros, mas buscando tudo aquilo que a sua pouca instrução lhe permitia compreender.

  

Os cadernos culturais dos jornais, a nova revista The New Yorker, tudo representava interesse para Alfie, que vivia procurando números lidos e abandonados. Começou a tirar de seu pequeno salário, alguns poucos dólares para comprar livros. E os que mais facilmente compreendia eram os livros infantis. Os contos, as fábulas, as pequenas conceituações filosóficas, as ilustrações, os personagens, o estilo simples, tudo o encantava. Passou a usar seu tempo livre de almoço ou fim de semana em bibliotecas públicas, sempre buscando a seção de livros infantis.

  

Portanto, ao sair da decepção de O cantor de Jazz, Alfie sabia que a sua decisão era um desafio quase sobre-humano para ele, mas tinha certeza de uma coisa: iria tentar fazer uma coisa da qual realmente gostava muito. Isso facilitava um pouco a sua tarefa. Gostar do que se faz é condição indispensável para conseguir fazer. Acreditar no que se faz é pré-requisito para alcançar o objetivo. Tal como acreditar no gênio da lâmpada para fazê-lo sair de lá e realizar os três desejos. Ou nos feijões mágicos para alcançar os céus. Poucos meses antes da tentativa de fazer o cinema falar, Charles Lindenbergh atravessara sozinho o Atlântico desde a Europa, para aterrisar o seu Spirit of St. Louis, um valente monomotor, numa New York incrédula e orgulhosa. Aquilo sim era acreditar e gostar de um sonho. E realizá-lo.

  

A partir deste dia, Alfie acrescentou às suas despesas a compra de cadernos e lápis, dedicando suas noites à tentativa de preenchê-los com histórias infantis.

  

A dificuldade, longe de desanimá-lo, fazia-o crer que, ao conseguir escrever seu primeiro conto, estaria realizando uma grande obra.

  

Naquela manhã de domingo de agosto, quando o verão parecia dar uma trégua após semanas de um calor sólido, Alfie decidira ir até o Bronx Zoo, observar as centenas de crianças que lotavam o parque. Ver como elas reagiam diante dos animais, conversar com elas, perguntar o que elas achavam dos bichos. Não era assim que Hammett fazia com policiais e criminosos para escrever as histórias dele?

  

Alfie chegara cedo ao Zoo e andou de um lado para o outro, lembrando de vez em quando de alguns lugares onde ele próprio estivera levado por seu pai para a grande festa de inauguração, 28 anos atrás. As planícies africanas e suas zebras, leões e gazelas. O passeio de camelo, o Mundo das Aves, a Ásia Selvagem, com elefantes, rinocerontes e tigres. Tudo isso continuava exercendo um repetido encantamento às crianças e ainda sobre ele mesmo, agora um adulto marcado pela misteriosa e nem sempre compreendida harmonia da vida.

  

Pouco tempo depois, o Bronx Zoo já se encontrava repleto. Alfie seguia em sua observação silenciosa, esperando encontrar algum fato curioso, algum garoto especial para conversar, qualquer coisa que o inspirasse a começar sua história.

Acabou por aproximar-se e iniciar conversa com um jovem casal que entretinha um garoto de uns 3 para 4 anos, muito gorducho e de olhos proeminentes. Seu nome era James Baldwin, primeiro filho dos dois e nascido no Harlem.

  

Alfie percebeu no garoto uma vivacidade extraordinária, embora ele não fosse agitado. Permanecia sentadinho enquanto os pais terminavam de espalhar as poucas coisas que compunham o pic-nic sobre a toalha listrada estendida na relva sob um imenso baobá de uma floresta tropical. Alfie procurava ganhar a confiança do garoto fingindo intimidade com seus pais, mas este se limitava a observá-lo atentamente. Alfie apresentou-se, iniciou uma conversa qualquer, sobre a beleza do lugar, o tempo maravilhoso, a graça do garotinho e todas estas outras coisas tolas que se costuma falar quando nos aproximamos de alguém sem um propósito determinado.

  

Aos poucos Alfie foi se aproximando do menino, brincando com ele, até colocá-lo sentado sobre seus joelhos. James parecia não se incomodar com isto, demonstrando confiança. Seguiram conversando, enquanto Alfie brincava com o garoto. O pai de James, sem nada saber do propósito de Alfie, a certa altura falou da sua vontade de que o filho viesse a ser escritor. Mas foi logo desencorajado por sua jovem esposa, que energicamente defendia a necessidade do negro encarar a sua condição de discriminado socialmente. Lembrava a todos os negros a fatalidade de ainda jovens, serem forçados a arranjar qualquer trabalho pesado, para ganhar algum dinheiro e poder sobreviver.

  

Alfie não fez qualquer comentário. Enquanto a mãe do garoto prosseguia em suas considerações pragmáticas a respeito do futuro das crianças negras, ele vagava o pensamento por outras regiões. Imaginava se esta coisa chamada destino, naquele instante já sabia o que viria a ser o garotinho James Baldwin, no momento sentado sobre os joelhos de um porteiro de um prédio em Manhattan e apontando energicamente para uma formiga. Alí em seu colo poderia estar um futuro músico de jazz ou um porteiro de mais um prédio em Manhattan.

  

O destino poderia já ter determinado exatamente o que o pequeno James iria ser nos anos seguintes e quando fosse um adulto. Mas, ele, Alfie, sabia de algumas coisas que o menino não poderia vir a ser, por mais poder e mistério que tivesse o destino. James Baldwin nunca iria ser Presidente dos Estados Unidos. Jamais seria Papa dificilmente cardeal ou até mesmo bispo. Não seria banqueiro nem industrial, tinha chances quase nulas de ser um general ou um almirante. Seu nome dificilmente sairia nos jornais, exceto se estivesse envolvido em algum escândalo ou algum crime. Sua mãe provavelmente estava certa e seu destino estaria mais próximo do Fulton ou da Grand Central, carregando peixes ou baús. Intelectual e escritor, só por descuido do destino.

  

Mas, era bobagem pensar em destino, pois se Baldwin um dia viesse a ser escritor ou marechal, todos diriam que este era o seu destino. Desta forma o destino passa a ser uma coisa inexorável, pois aconteça o que acontecer, ele será sempre o que tiver acontecido. E portanto imutável, tornando a vida uma coisa pré-determinada e independente da nossa vontade. Seria isso possível? Será que não podemos ter qualquer influência sobre a nossa própria vida, ou seria o destino apenas um jogo de palavras. Se um branco bem nascido em Greenwich Village acabasse seus dias como faxineiro de um cabaré no Harlem isto teria sido o seu destino ou uma falha dele?  Tudo aquilo que foge à lógica das probabilidades é o destino ou seria exatamente o contrário?

  

Alfie não tinha certeza de nada sobre isso, mas sentia em seu íntimo que não era possível alguém não puder influir sobre a sua própria vida. Ele próprio estava neste momento de sua existência tentando mudar o estado de coisas até então existentes na sua vida. Se conseguisse, evidentemente o mérito seria seu e não do acaso. Se o pequeno Baldwin um dia viesse a ser papa ou escritor, seguramente deveria isto a si próprio e não ao destino. Para Alfie, destino era tudo aquilo que é óbvio. Trabalhar, casar, ter filhos, pagar impostos, ir para um asilo de velhos, tudo isso é destino. Morrer é o destino de quem vive, ficar só o destino de quem ama, adoecer o destino de quem é sadio, ir à guerra o destino de quem nasce nos Estados Unidos.

  

Fugir a isso é subverter a ordem cósmica, que imediatamente terá que corrigir seu equilíbrio alterando alguma outra coisa, através de um imprevisto, um acidente, um fato qualquer. Isto inverte o processo de raciocínio usual, fazendo supor que a energia tenha que se modificar para manter a harmonia universal apesar de um movimento não previsto.  Um terremoto talvez compense o fato de Baldwin tornar-se Senador da República, uma guerra entre famílias da Máfia pode equilibrar novamente o planeta caso ele torne-se um general e certamente um grande incêndio destruindo a Columbia University, ao menos em parte, resolverá a turbulência causada por livros escritos por ele.

  

Um súbito calor na perna direita interrompeu o raciocínio complicado de Alfie. Era James Baldwin demonstrando qual o destino que espera quem carrega no colo um garotinho que uma hora antes bebera duas mamadeiras de suco de laranja com leite.

  

Alfie levantou-se enxugando as calças e resolveu encerrar alí a sua pesquisa de campo com aquela simpática família. Estava cansado, a tarde já ia alta e ele não conseguira durante todo o dia, encontrar nada que o ajudasse a escrever uma história infantil.  Vira crianças brincando, famílias descansando, animais dóceis e namorados indiferentes a tudo. Alfie pensou que talvez as histórias, por estarem em todos os lugares, não estivessem em nenhum lugar especial, apenas na imaginação de quem as escreve. Mas isto também era um raciocínio complicado demais para quem estava com as calças molhadas e Alfie logo afastou esta possibilidade.

  

Despediu-se entre sorrisos e pedidos de desculpas. Beijou o pequeno e seguiu pela alameda de pedregulhos, ladeada por azáleas. Depois de alguns passos, virou-se para olhar a pequena família. Sorridente, James Baldwin, 3 anos, negro nascido no Harlem, NY, acenava com a pequenina e gorda mãozinha para ele, indiferente ao destino ou ao óbvio. Alfie acenou de volta para ele, sentiu-se de repente envolvido pela paz do Bronx Zoo e seguiu em frente, de volta para casa.

  

Caminhava tranqüilo, quase alegre, assobiando baixinho Toot, Toot, Tootsie; que Al Jolson cantara no terrível filme falado.

  

Manhattan não era alí.