Cultura

VIII CAPÍTULO DA NOVELA "MANHATTAN É LOGO ALÍ", POR MARCO GAVAZZA

Vide
| 17/10/2009 às 22:28
Paramount Stúdios
Foto: Arquivo

CAP. 8

12 de outubro de 1926. Paramount Films Studio, 35th Av., Astoria.


No outono do ano anterior, num sábado de vento frio e ruas desertas em Lower Manhattan, em pleno escritório da administração do Woolworth Building, o chefe dos porteiros, Owen Willig, fora encontrado morto com três tiros nas costas. Durante todo o fim de semana a polícia vasculhou o enorme edifício, interrogou funcionários do prédio e empregados dos escritórios, tirou fotografias, afastou a multidão de curiosos que se formara frente ao local, comeu centenas de cachorros-quentes, levou e trouxe de volta gente para a delegacia na Varick St., deu entrevistas para as rádios e os jornais, deixou tensa a gang de Dutch Schultz e seus distribuidores clandestinos de bebida, atraiu todas as prostitutas da redondeza e nada encontrou.

  

O crime passou a ser investigado pelo pessoal da Homicídios, já que nenhuma evidencia foi encontrada. Owen recebera as três balas pelas costas, num minuto qualquer entre 5 e 9h. da manhã do próprio sábado, com o Woolworth já funcionando portanto, embora deserto. A porta do escritório não tinha sido forçada, nada fora remexido, não havia impressões digitais e a possibilidade da arma ser registrada era quase nula.

  

Poderia ter sido qualquer um que possuísse um revólver calibre 38, razões para apertar o gatilho três vezes contra Owen e medo suficiente para fazê-lo pelas costas. Por este raciocínio, a única dedução correta era que o assassino sabia ser Owen um corajoso ex-combatente e portanto arriscado enfrenta-lo cara a cara. Isto incluía metade do Woolworth, boa parte do Bronx onde morava e quase todos os sobreviventes da Grande Guerra.

  

Alfie também fora interrogado, porém seu depoimento não ajudou em nada. Às 5 da manhã ele estava saindo do Woolworth. Não ouvira nada, não registrou a entrada de nenhum estranho durante a noite nem percebera qualquer movimentação suspeita. Foi liberado com a recomendação de não deixar a cidade sem avisar a Polícia. Como se houvesse alguma hipótese dele deixar a cidade e para que.

  

Passado o alvoroço do crime, as coisas começaram a melhorar para Alfie.  Ele não podia negar que a vida melhorava um pouco para ele. Nada de grandioso ou notável, porém efetivamente melhorara. O substituto de Owen foi Sidney Cadman, antigo parceiro de boliche do velho Bill Warthon e longínquo parente pobre do pastor Parkes Cadman, que o empregara logo ao se instalar no Woolworth graças aos desvarios de Mr. Woolwoth. Sidney também simpatizava com Alfie e logo o reconduziu ao seu antigo horário e deu-lhe um aumento de salário, tentando recompensar o tempo que testemunhara Owen perseguir Alfie.


Graças a isso tudo Alfie conseguiu comprar sua casa, se não na City Island como sonhara um dia, mas no Queens, longe de ser um lugar ideal, mas finalmente livre do aluguel e da compulsória convivência diária com o passado no Harlem, aonde só ia agora quando queria de preferência nas madrugadas das terças feiras. Foi o suficiente, senão para dar-lhe uma situação tranqüila, para acalmar-lhe a alma.

  

Acompanhando sempre as notícias sobre a investigação da morte de Owen, Alfie acostumara-se a ler as páginas policiais dos jornais, coisa que sempre detestara. Descobriu então um interesse especial por histórias de crimes, detetives, assassinatos e mistérios; passando até a ler livros do gênero.  Por isto, no feriado de Columbus Day, fora até Astoria, bisbilhotar o estúdio da Paramount Films, onde soubera estarem rodando um filme de enredo policial com Gloria Swanson. Mais que a própria linguagem do mundo das histórias policiais, fascinava Alfie a descoberta de que ainda era capaz de encontrar novas motivações e novos interesses em sua própria vida.

  

Ele desconhecia o fato de que, para surgirem novos caminhos na vida de cada um, é necessário que se percorra intensamente os anteriores. Somente quando se encerra uma etapa da vida de forma clara e consciente é que novos caminhos podem surgir espontaneamente.

  

Quando se está só e em paz, como se encontrava Alfie, novas possibilidades, novas perspectivas surgem naturalmente, não importa qual a idade que os documentos registrem. Porque a atividade energética não cessa diante de nada além da nossa própria incapacidade temporária de resolver as etapas que vão surgindo em nosso caminho, para que outras possam se oferecer.  Estágios de vida não resolvidos estacionam a energia, às vezes por períodos tão longos que ela cumpre um ciclo vital e se transmuta, diante da necessidade de seguir adiante. Estes períodos de vida não resolvidos impedem que novos horizontes despontem para serem enfrentados, conhecidos e também vencidos.

  

À sua maneira, Alfie encerrara o ciclo iniciado em 1920 e saíra dele em paz.

  

Isto abriu para eles outras perspectivas, por mais insignificantes que fossem. O significado real de cada etapa vencida só será revelado bem mais adiante, assim como somente saberemos como foi importante engatinhar depois que nossos passos começarem a ficar hesitantes. Se não vencemos uma fase, ficamos girando em torno dela, como um elétron ou um nêutron, prisioneiros de um átomo parado, sem percebermos que na verdade também estamos parados.

  

Alfie saíra do campo gravitacional de Rose Helen sem maiores danos.


A obrigação a que se impôs de mensalmente depositar alguma quantia na sua conta bancária, vinha da sua afetividade por ela e não de um compromisso com o passado. Nunca mais vira Rose Helen, o que, entretanto não impedia que procurasse ajuda-la. Estava livre, pois compromissos com o afeto não trazem junto grilhões ou algemas. Vencida de forma lúcida e limpa esta etapa, Alfie encontrara um pouco de paz, encontrara a si mesmo e começou a encontrar outras coisas simples pela vida. Pela primeira vez na vida ele tinha uma mínima visão do que poderia significar a expressão I'm Playing The Big Apple, que vira nascer entre os músicos do jazz no Harlem e nunca entendera direito.

  

Chegar ao topo pode significar apenas estar em paz e gostar de coisas simples.

  

Como este interesse por histórias policiais, que o divertiam e de certa forma o ajudavam a se instruir mais, descobrindo lugares, hábitos, coisas que nunca dera atenção antes. Por isso agora, em pleno feriado de 12 de outubro, saíra cedo de sua casa no Queens para ir até próximo do enclave tipicamente grego de Astoria, tentar entrar no estúdio da Paramount ali perto e quem sabe com um pouco de sorte até ver Gloria Swanson de perto.

  

Mas, Alfie não estava preparado para o que aconteceria em seguida.

  

Parado de pé ao lado do grande portão de entrada do imenso estúdio cinematográfico de New York, por trás das altas grades de proteção, Alfie observava a movimentação lá dentro, tentando identificar algum astro famoso, como Rodolfo Valentino ou um dos irmãos Marx, que também rodavam musicais e comédias por ali. Inaugurado em 1920, o estúdio da Paramount representava o maior investimento que o cinema já havia feito até aquela época. Comentava-se inclusive que estavam em andamento as primeiras experiências com o objetivo de fazer filmes falados. Alfie não acreditava muito nisso, achando inclusive que se fosse possível fazer os atores falarem nos filmes, eles perderiam toda a graça, acabando com a necessidade de o espectador prestar atenção ao que acontecia na tela, pois toda a história seria contada.

  

Seria melhor escutar o rádio. Atento ao lado do portão enquanto imaginava também como poderia entrar no estúdio, Alfie de repente percebeu uma grande movimentação na porta de um dos galpões de filmagem. Um reluzente automóvel conversível parou na porta do galpão e por ela saiu Glória Swanson, acompanhada de um elegante cavalheiro de finos bigodes, terno impecável e fina bengala na mão esquerda.

  

Era Dashiell Hammett, um jovem escritor que estava revolucionando as histórias policiais e provavelmente escrevera o roteiro do filme. Algumas das pessoas que estavam perto pararam o que faziam para observar aquela nova artista, que todos apontavam como a única artista capaz de enfrentar a popularidade da arrasadora Mae West, que brilhava nas peças da Broadway, quando a polícia não fechava o espetáculo, e também se lançava ao cinema.

  

Acomodados no banco traseiro do carro, este arrancou em direção ao portão onde estava Alfie. Imediatamente os porteiros e seguranças da Paramount cuidaram de abrir as enormes portas, postando-se lado a lado com grandes sorrisos no rosto e os olhos fixos em Gloria.  Ao reduzir a velocidade para receber de volta a credencial de acesso ao estúdio, o motorista praticamente parou o carro ao lado de Alfie. Fascinado com a proximidade da beleza da jovem Gloria Swanson, quase ao alcance de sua mão esquerda, Alfie não ouviu quando alguém falou com ele. Somente quando a voz firme repetiu a pergunta, ele se deu conta de que se dirigiam a ele.

  

- Porque não contou à polícia que Owen Willig perseguia você?

  

Era Dashiell Hammett que olhando fixamente, fazia a pergunta a Alfred "Alfie" Lee, porteiro do Woolworth Building, em Lower Manhattan, Downtown, NY.

  

Alfie não sabia que Hammett estava revolucionando a literatura policial por ser o primeiro escritor do gênero e se aproximar do crime para melhor entende-lo e poder escrever realisticamente suas histórias. Durante alguns anos chegara a trabalhar realmente como detetive de uma agência, para melhor descrever como funciona o mundo do crime. Hammett acompanhava autópsias, tinha diversos amigos na polícia, outros entre as quadrilhas de New York, entendia de armas, sabia dos principais pontos de tráfico da cidade e por diversas vezes acompanhara diligências da polícia atrás de criminosos. Por isto se interessara pelo caso Owen, fizera suas próprias perguntas, sempre com a desculpa de estar escrevendo um conto policial, e assistira alguns depoimentos, entre eles o de Alfie. Com um movimento rápido Hammett abriu a porta da frente de carro e com um gesto mandou Alfie entrar.

  

Automaticamente Alfie obedeceu, sem qualquer reação diante da inesperada pergunta. Gloria Swanson imediatamente protestou contra aquela intromissão em sua privacidade, mas Hammett sussurrou alguma coisa em seu ouvido e ela calou-se, sem, entretanto esconder a contrariedade e a indignação. A um sinal de Hammett, o motorista que esperava atento o resultado daquele acontecimento inesperado, arrancou com o automóvel e seguiu na direção da Queensborough Bridge, rumo à 5th Av., mais exatamente para o Gotham Hotel, favorito das estrelas do cinema, onde Gloria Swanson entrou como uma rainha.

  

Dali, sem trocar uma única palavra, Hammett o respeitado escritor de histórias policiais e Alfie, o porteiro do Woolworth, onde Owen recebera três tiros pelas costas; seguiram até o Twin Peaks, no 102 da Bedford St., em Greenwich Village, prédio recém-inaugurado e de estranho formato, que abrigava escritores, atores e artistas que escalavam o sucesso em New York.

  

Numa pequena sala repleta de livros, coleções de jornais, cadernos cheios de anotações e uma reluzente máquina de escrever Royal que dominava imponente uma mesa de mogno, sentaram-se frente a frente.  A aparência e a realidade. Hammett, o aparente escritor que tirava suas histórias da imaginação, quando na verdade era um experimentado detetive, com uma pouco conhecida convivência com o mundo do crime e mais sagaz que muitos tiras. Alfie, o aparente ingênuo porteiro do Woolworth, quando na verdade um conhecedor do mundo do jazz, da noite do Harlem, recém-escapado de uma conturbada história de amor que nada tinha de ficção. Aos olhos de Hammett, Alfie era um suspeito. Aos olhos de Alfie, Hammett era um contador de histórias.

  

Aparência e realidade costumam interligar-se a tal ponto que fica difícil distingui-las. Algumas pessoas buscam a aparência distinta da realidade por questões estratégicas diante de um objetivo. Outras a consideram uma proteção indispensável para um mundo que precisam preservar. Várias projetam na aparência características que desejariam possuir e a vida não lhes permitiu. Inúmeras sequer percebem que vivem da aparência, isoladas da realidade por um fosso profundo aberto em suas mentes, entre sua percepção e a forma real de tudo que os cerca, embora todos à sua volta percebam a aparência, a realidade e o próprio fosso.

  

Assim, o mendigo da esquina pode ter uma boa soma depositada num banco ou no fundo do colchão imundo onde dorme. O arrogante cavalheiro que pergunta os preços das jóias na Cartier pode não ter um único cent no bolso. Por trás do grandalhão que carrega enormes malas na Grand Central como se fossem balões de gás, pode se esconder um covarde. Já a loura esvoaçante que desfila pela noite nas alamedas do Central Park pode ser um perigoso drag. Carregando cada qual por motivos diferentes a sua aparência convencionada, as personagens se relacionam com o mundo e as pessoas reais à sua volta, tornando confusas as conseqüências desta convivência. O que fazer ao se descobrir que uma amiga de muitos anos é na verdade uma agenciadora de prostituição juvenil? Como olhar para um companheiro de trabalho e de vida particular quando ele é flagrado como hábil falsário?  Não há nada a fazer.

  

A imagem e o afeto que desenvolvemos por uma pessoa é real a partir do que sentimos vindo dela, pouco questionando se isto é verdadeiro ou aparência. O nosso sentimento é real e isto é o que importa. Ninguém se apaixona pela folha corrida de outro.  Ninguém volta a ficar doente por descobrir que quem o curou foi um falso médico. Ninguém acha que não foi assaltado porque a polícia descobriu que o bandido usava um revólver de brinquedo. Descobrir que uma pessoa não é o que demonstrava ser provoca na maioria das vezes uma decepção, mas dificilmente elimina o sentimento existente. Mesmo que se encerre o relacionamento, o afeto existente permanecerá, mesmo que isto seja publicamente negado. Só mudamos nossos sentimento em relação a outras pessoas quando somos obrigados a isso por razões que nos atingem diretamente e de forma deliberada. E geralmente cobramos caro pelo preço desta mudança que somos obrigados a fazer em nossos corações. Se desenvolver um processo de afetividade exige tempo, reformula-lo exige sacrifícios.

  

Aparência e realidade na verdade só passam a existir no momento em que desaparecem. Assim, diante um do outro, Alfie e Hammett eram dois contadores de histórias que se admiravam. Hammett simpatizara com Alfie ao ouvi-lo depor na polícia. Alfie simpatizava com Hammett pela histórias que lera escritas por ele. Isto bastou.  Alfie finalmente respondeu a pergunta de Hammett:  "Ser negro por si só já era ser suspeito."  Revelar à polícia que Owen o perseguia no trabalho do Woolworth seria entregar os pulsos às algemas. Hammett melhor que ninguém sabia que isto era verdade. A partir daí conversaram pelo resto da tarde como velhos conhecidos. Sobre o crime, a polícia, o Harlem, a arte de escrever, o cinema, o jazz, o trabalho assalariado, a luta pelo sucesso, as mulheres e tudo o mais que compõe a vida real.

  

Despediram-se sabendo que nunca mais se veriam. Alfie saiu do Twin Peaks e caminhou durante algum tempo sem prestar muita atenção por aonde ia. Seguia pensando em tudo o que acontecera naquela manhã, desde o instante em que viu Gloria Swanson no estúdio da Paramount até agora, quando deixava o apartamento do mais importante escritor de histórias policias de New York. Alfie acabara de conhecer um pedaço de um mundo do qual jamais houvera se aproximado. Depois de algum tempo caminhando entregue aos pensamentos, Alfie espantou-se ao ver diante de si a imponente fachada da Old Courthouse.

  

Manhattan era alí.