Cultura

VI CAPÍTULO DA NOVELA "MANHATTAN É LOGO ALI", POR MARCO GAVAZZA

Vide
| 03/10/2009 às 22:28
O jazz toma conta de Nova Iorque e Chicago e Rose ensaia na Trinit Church
Foto: Arquivo

CAP. 6

Abril de 1924. South Street Seaport.


Bill Warthon não chegou a se aposentar. Um ataque cardíaco o matou sem que pudesse descansar após tantos anos de trabalho e sem que visse nascer o filho de Alfie e Rose Helen, que ainda acreditava viria a existir.

  

Com a morte de Bill, Alfie continuou em seu posto de porteiro e aumentaram as dificuldades, já que ninguém além dos dois sabia da intenção de Bill em indicar Alfie para seu lugar.

  

O novo chefe dos porteiros, Owen Willig, ex-combatente da 1a Guerra, decidiu transferir Alfie para o período noturno, o que o obrigava a trabalhar das 23 h. até as 5 h. do dia seguinte.

  

Isso mudou completamente sua vida, acrescentando desta vez um motivo muito forte para pensar em sair do emprego. Entretanto, sem Bill Warthon a casa em City Island ficava inalcançável e tudo muito mais complicado, adiando de forma inevitável seus projetos.

  

Sua vida com Rose Helen parecia se dirigir a um momento melancólico. Ela tornara-se militante do movimento negro, andara até se apresentando na Columbia University, sempre acompanhada de perto por Marcus Garvey, mas as portas do show business fecharam-se mais ainda. A presença constante de Rose Helen em manifestações e assembléias organizadas por Garvey acabaram por torná-la indesejável no circuito do jazz, que sobrevivia no final de tudo, com os dólares que vinham de Downtonw a bordo dos bolsos dos brancos.


Os donos da noite no Harlem sabiam perfeitamente disso e não estavam nem um pouco interessado em contrariar sua fonte de renda garantida. Ninguém estava interessado em ouvir uma cantora que desafiava a situação existente, cantando canções de protesto. Em 1924 as grandes bands surgiam de todos os lados, tocando um swing que os negros não sabiam tocar e que encantava a juventude saudável, que gostava de dançar em grandes salões iluminados, longe dos ambientes enfumaçados do jazz.

  

Na orquestra de Ben Polack, em Chicago, estreava um jovem trombonista chamado Glenn Miller, que segundo todo o noticiário musical era um fenômeno musical.

  

Quem iria então querer ouvir uma negra militante além dos próprios membros do movimento?

  

Rose Helen fazia sucesso em todas as aparições politizadas de Marcus Garvey, mas jamais conseguira subir ao palco de um night club. Cativada pelos aplausos da platéia dos comícios, ela parecia se refugiar neste sucesso localizado, atribuindo cada vez mais o bloqueio à sua carreira ao racismo e aos interesses econômicos. O que só era verdade em relação aos negócios.

  

Para manter o som dos aplausos sempre próximo de seus ouvidos, Rose Helen se envolvia cada vez mais com Marcus Garvey, acompanhando-o em suas viagens e desaparecendo de casa por longos períodos.

  

Alfie para cumprir o seu novo horário de trabalho precisava dormir a maior parte do dia, após chegar a casa sempre por volta das 7 da manhã, depois de trabalhar toda a noite atendendo fornecedores, profissionais madrugadores, funcionários em serão, bêbados extraviados e todo tipo de personagens que vagavam pela noite em Downtown. Quando acordava, já no final da tarde, raramente Rose Helen estava.

  

Ele cuidava um pouco do apartamento, preparava sua refeição, a marmita para a noite e escutava o rádio até a hora de pegar o metrô e voltar para o Woolworth. Pelo rádio agora só chegavam as música do swing de Benny Goodman, Les Brown, Harry James e outras orquestras brancas que estavam no auge da moda.

  

Aquelas poucas horas de música por noite, que lentamente tiravam o jazz das paradas dando lugar ao swing, sempre faziam Alfie pensar um pouco sobre os ciclos da vida e sua lógica impenetrável.

  

O misterioso mecanismo que faz determinada coisa ceder lugar a outra após um período determinado de tempo, não pode ser casual. Se a natureza funciona em ciclos, tudo que faz parte dela também deve funcionar assim, é claro.

  

Não há como evitar que o outono ceda lugar ao inverno, impossível fazer um fruto não se transformar em semente, debalde tentar convencer a maré baixa a não subir ou a lua cheia a não minguar.


A vida portanto deve funcionar assim também, porque há necessariamente um padrão cósmico de energia, ainda que infinitas formas dela se manifestar acabem por eliminar em nós a hipótese de existir o padrão.  Se existe o padrão, o mais próximo dele certamente é o dos ciclos, que o universo segue rigorosamente e a natureza também, sempre que o homem o permite.

  

Mas, se sabemos o que virá após cada estação, cada flor, cada noite, cada movimento do oceano e cada fase da lua, com as coisas da vida isto não acontece com tanta clareza. A um tempo solitário na vida, pode seguir-se outro de ainda maior solidão ou de intensa convivência afetiva. A prosperidade pode dar lugar à estabilidade, à falência ou a uma prosperidade ainda maior, sem que isto seja matemático. A um longo período de estudo e pesquisa pode-se chegar a uma descoberta surpreendente ou simplesmente voltar ao ponto de partida.

  

Se a natureza tem lógica, a razão da imprevisibilidade dos ciclos humanos deve estar na influência do próprio homem sobre eles. Lidando com a vida de forma sempre circunstancial, o ser humano manipula forças desconhecidas em doses e seqüências descontroladas, terminando por não reconhecer os ciclos gerados a partir daí.

  

Quando se joga uma pedra na superfície quieta de um lago, sabe-se que surgirão sobre ela círculos concêntricos a partir do ponto onde a pedra cair. Mas se diversas pedras são jogadas aleatória e simultaneamente sobre a mesma superfície, impossível determinar o que irá se formar sobre a água.

  

Insistir de tantas formas diferentes em determinado aspecto da vida, como Rose Helen vinha fazendo em sua tentativa de tornar-se estrela do mundo musical, talvez provocasse apenas ciclos de turbulência sobre a água.


Talvez houvesse a necessidade natural de esperar com serenidade o efeito de cada atitude tomada e só a partir daí efetuar um segundo movimento, como num jogo de xadrez. Impossível imaginar cada lance da batalha dos tabuleiros permitindo a movimentação de diversas peças simultaneamente, sem provocar um caos absoluto no jogo e a desorientação dos jogadores.

  

Se a física está correta ao afirmar cada a cada ação surge uma reação igual e contrária, para diversas ações simultâneas surgirão inúmeras reações diversas, tornando tudo muito difícil de ser compreendido. E é de se crer que a física pode ser aplicada à vida.

  

Esperar a resposta após cada movimento diante da vida pode tornar mais fácil a compreensão da própria batalha que é viver. Talvez esta seja a única regra aplicável ao jogo que se desenvolve no tabuleiro deste planeta. Ordenar os movimentos parece ser uma forma de poder prever, ainda que vagamente, as seqüências da vida.

  

Alfie não percebia a extensão ou a duração do ciclo que vivia, mas sentia estar no fim de um deles, da mesma forma que a música negra, as forças econômicas do mundo e os bougainvilles.


Naquele dia de abril Alfie saiu mais cedo do nº 200 da W135 St. pois pretendia passar pelo Sloppy Louie's, no Schermerhorn Row, na South Sreet, para tomar uma boa terrina de bouillabaise antes de ir para o Woolworth, ao invés de levar a cotidiana marmita. Talvez uma nostalgia futura, uma saudade antecipada da casinha, que agora sabia nunca iria ter na City Island, justificasse tal extravagância.

  

Desceu do metrô na estação City Hall e seguiu andando a pé em direção à South St. contemplando ao longe as luzes da Brooklin Bridge, brilhando na noite recém-instalada. Passava pela porta principal do luxuoso Meyer's Hotel, quando dele saíram carinhosamente abraçados, sorrindo muito e de banho acabado de tomar, Rose Helen e Marcus Garvey. Entraram num táxi rapidamente, sem sequer perceber a presença de Alfie, quase em frente à eles.

  

Naquela noite ele não bebeu sua terrina de bouillabaise, nem foi trabalhar no Woolworth.

  

Perambulou mecanicamente por um bom tempo pelo Fulton Fish Market, deserto àquela hora, vendo centenas de rose helens e marcus garveys estirados em todas as bancas de peixe, todos fazendo sexo ao som de gospels e do barulho enfurecido do mar.

  

Pegou o metrô de volta para a Lennox e foi direto para casa. Ligou novamente o rádio e seguiu noite adentro escutando a orquestra branca de Earl Hines, enquanto pensava novamente nos tais ciclos da vida, agora sob um novo ângulo.

  

Pouco depois da meia-noite Rose Helen entrou no apartamento, surpreendendo-se ao encontrar Alfie. Ainda sorridente, falou para ele:

  

-Não foi trabalhar hoje, amor?  Eu estava na Broadway desde a tarde, ensaiando com o coral da Trinity Church. Você sabe, Manhattan é logo ali.