Cultura

A CORAJOSA OBRA DE SOPHIE CALLE EM "CUIDE DE VOCÊ", POR LIGIA AGUIAR

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| 27/09/2009 às 20:26
A obra de Sophie Calle fica no MAM até 22 de novembro, em Salvador
Foto: Diane Pernet
  Quem nunca sofreu com o término de uma relação amorosa? Quem não chorou rios de lágrimas por um amor desfeito? Pois é, para a artista conceitual francesa Sophie Calle, esse tipo de atitude não faz sentido diante da sua personalidade criativa.


  Ela recebeu via e-mail uma carta do seu então namorado, o escritor francês Grégoire Bouilliet, rompendo o romance entre eles. Perplexa, e sem saber o que fazer, resolveu seguir à risca o conselho final que ele lhe deu: "Prenez Soin de Vous", ou "Cuide-se". A forma que achou para sair sem arranhões emocionais desse brusco rompimento foi convidar 104 mulheres para interpretar e entender a carta.


  Entre elas, estão artistas famosas - as atrizes Jeanne Moreau, Victoria Abril e Maria Medeiros -, anônimas, amigas e conhecidas - uma antropóloga, uma criminologista, uma atiradora, uma estudante de 9 anos, uma jogadora de xadrez, uma vidente, uma locutora de rádio, uma clown e até a mãe de Sophie que a confortou: "Não faça muito drama, minha filha. Linda, famosa e inteligente como você é, em breve fisgará um cara melhor". Mais: duas marionetes e uma cacatua.


  Surgiu daí o premiado trabalho, Cuide de Você, uma instalação com textos, fotografias e vídeos, que ela apresentou pela primeira vez na bienal de Veneza em 2007. A exposição seguiu para Nova York, São Paulo e, desde o dia 23, está em cartaz no Museu de Arte Moderna da Bahia - MAM.


  A artista plástica de 56 anos, que também é escritora e fotógrafa, mantém a sua criatividade juvenil e original. Utiliza a narrativa de experiências pessoais para a criação de seus trabalhos, o que a tornou mundialmente famosa. A imprensa britânica apelidou-a de "Marchel Duchamp da roupa suja emocional".


  Considero Cuide de Você uma obra inteligente e corajosa. Ao mesmo tempo me deixa tomada por dúvidas: se realmente essa "lavagem de roupa" é verídica, ou se é proposital, para suscitar esse jogo de falso e verdadeiro. 


  Em 2004, Grégoire dedicou um livro à Sophie, O Convidado Surpresa. No seu relato, relembra como a conheceu. Não seria Cuide de Você uma resposta ao livro?  Não só a carta está publicamente exposta, como também a própria Sophie e o ex-namorado, à mercê de julgamentos. Mas como ela própria diz, deixa para os "críticos as críticas".


  Ela se defendeu. Não quis sofrer. Cuidou bem dela. A arte prevaleceu ao amor. Em outros tempos, em que dominava o amor romântico, com direito ao sofrimento, uma ruptura como essa, tornava as pessoas infelizes e amargas pelo resto das suas vidas. Mas estamos em pleno século 21, na era tecnológica - a agilidade da Internet está aí para, entre outras coisas, romper e simplificar os sentimentos mais complicados.


  "Sophie Calle é a artista da percepção sobre o privado", diz Danilo Santos de Miranda, diretor do SESC São Paulo, "O que a faz tão singular é que este privado não é o do outro, mas seu próprio. Ela é capaz de se transformar de sujeito da ação a objeto. Passar de figura fragilizada por uma separação amorosa à artista que faz de seu momento íntimo e decepcionante um grande espetáculo, mas um espetáculo para que cada um reflita sobre suas decepções também."


 Será que alguém pensou no outro lado da moeda? O que levou Grégoire a romper o relacionamento dessa forma?  Deixar uma antiga relação, com uma simples mensagem via internet? Que sentimentos esse homem tem (ou teve) por Sophie? É verdadeiro nas suas explicações? Ou o amor não foi suficiente para ele levar adiante o caso e inventou as desculpas?


Já que a vida pessoal de Grégoire tornou-se pública também, não seria o caso de Sophie explorar agora o conteúdo da carta sob outro ponto-de-vista? Desta vez, poderia juntar alguns varões para decifrar a difícil alma masculina e os sentimentos de um homem que abdicou do tête-à-tête, em favor das ondas virtuais, para proclamar o famoso c'est fini.



A CARTA


"Há algum tempo, venho querendo responder seu último e-mail. Na verdade, preferia dizer o que tenho a dizer de viva voz. No entanto, vou fazê-lo por escrito.


Você já pôde notar que não estou bem ultimamente. É como se não me reconhecesse em minha própria existência. Sinto uma espécie de angústia terrível, contra a qual não consigo fazer grande coisa, exceto seguir adiante para tentar superá-la. Quando nos conhecemos, você impôs uma condição: não ser a 'quarta'. Eu mantive o meu compromisso: há meses deixei de ver as 'outras', não achando logicamente um meio de vê-las sem transformar você em uma delas.


Pensei que isso bastasse. Pensei que amar você e que o seu amor - o mais benéfico que jamais tive - seriam suficientes. Pensei que assim aquietaria a angústia que me faz sempre querer buscar novos horizontes e me impede de ser tranqüilo ou simplesmente feliz e 'generoso'. Pensei que a escrita seria um remédio, que meu desassossego se dissolveria nela para encontrar você. Mas não. Estou pior ainda; não tenho condições nem sequer de lhe explicar o estado em que mergulhei. Então, nesta semana, comecei a procurar as 'outras'. Sei bem o que isso significa para mim e em que tipo de ciclo estou entrando. Nunca menti para você e não é agora que vou começar.


Houve uma outra regra que você impôs no início de nossa história: no dia em que deixássemos de ser amantes, seria inconcebível para você me ver novamente. Você sabe que essa imposição me parece desastrosa, injusta (já que você ainda vê B., R.,...) e compreensível (obviamente...).

Com isso, jamais poderia me tornar seu amigo. Você pode, então, avaliar a importância de minha decisão, uma vez que estou disposto a me curvar diante de sua vontade, ainda que deixar de ver você e de falar com você, de apreender o seu olhar sobre os seres e a doçura com que você me trata sejam coisas das quais sentirei uma saudade infinita. Aconteça o que acontecer, saiba que nunca deixarei de amar você do modo que sempre amei desde que nos conhecemos, e esse amor se estenderá em mim e, tenho certeza, jamais morrerá.


Mas hoje seria a pior das farsas manter uma situação que, você sabe tão bem quanto eu, se tornou irremediável, mesmo com todo o amor que sentimos um pelo outro. E é justamente esse amor que me obriga a ser honesto com você mais uma vez, como última prova do que houve entre nós e que permanecerá único.

Gostaria que as coisas tivessem tomado um rumo diferente.

Cuide-se."


Cuide de Você,
instalação da artista conceitual francesa Sophie Calle ficará em cartaz até 22 de novembro no MAM. Acesse a programação das oficinas no site do museu http://www.mam.ba.gov.br/.