Cultura

5º CAPÍTULO DA NOVELA "MANHATTAN É LOGO ALI", POR MARCO GAVAZZA

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| 26/09/2009 às 23:58
Sugar Hiil Harlem cenário da novela de Marco Gavazza
Foto:

CAP. 5

1º de maio, 1923. Mount Morris Park, Harlem, NY.


  

Alfie não entendeu muito bem porque Rose Helen deixara aquele bilhete para ele, pedindo de forma tão insistente e séria, que fosse encontrá-la no Mount Morris na tarde do feriado de 1º de Maio. Ele sabia que haveria por lá uma espécie de manifestação política ou coisa semelhante. Um tal de Marcus Garvey, líder negro que emigrara da Jamaica em 1906, havia fundado anos antes a Universal Negro Improvement Agency, uma entidade que promovia a integração e a ajuda entre a raça, estimulava todos se orgulharem da cor e propunha um movimento de retorno às origens africanas.

  

Tudo isso parecia complicado demais para Alfie, que nos últimos meses vinha pensando apenas em conseguir melhorar de vida, talvez até, em último caso, saindo do emprego garantido no Woolworth Building para tentar alguma outra coisa.

  

Ele chegara à conclusão de que para Rose Helen sair do estado letárgico em que se encontrava, ele precisava sair do Harlem e da proximidade de todo aquele mundo ilusório que se criara em torno do jazz, rico em prostitutas, night clubs, traficantes, cafetões, agenciadores, agentes artísticos, gim, maconha, ópio e indefinição.

  

Não sabia exatamente para onde ir, talvez até para City Island, continuando no Woolworth, passando a trabalhar também como garçom à noite e quem sabe até tomar banho de mar em Orchard Beach nos fins de semana. Por isso ele não estava preocupado com o que fazia Marcus Garvey e a sua Universal Improvement sabe-se lá o que. Entendia menos ainda como Rose Helen poderia estar interessada em coisas deste tipo.


Talvez fosse apenas mais uma das brincadeiras absurdas que Rose Helen passara a fazer com ele nos últimos tempos. Como por exemplo ligar para Bill Wharton e suplicar-lhe para convencer Alfie a não obrigá-la a abortar, quando nem grávida estava e dificilmente ficaria, pois um médico havia diagnosticado nela, após um exame de rotina, uma má formação uterina congênita.

  

O choque fora terrível para Bill, que ainda esperava ansiosamente o dia de batizar seu imaginado afilhado e ele pretendeu cortar relações definitivamente com Alfie. Convence-lo de que tudo aquilo não passava de uma brincadeira alucinada de Rose Helen, sem informar-lhe do gim e da maconha que ela vinha consumindo em doses gigantescas, foi dificílimo para Alfie.


Mesmo depois de muitas explicações, inúmeros exemplos de peças semelhantes aplicadas por ela e uma inevitável sinceridade que acabaram por resolver a situação, Bill ainda permaneceu com uma certa reserva. Entretanto, a confiança que tinha em Alfie e a veemente posição antiaborto que ele assumira tiveram o efeito esperado, fazendo-o em pouco tempo esquecer o louco episódio. Alfie sempre se debatera moralmente quanto a esta questão, irmão que teria sido de diversos abortados por sua mãe.  Interromper um processo vital em andamento sempre lhe pareceu um crime.

  

Ele nunca questionara o aborto fora do contexto da procriação, embora suspeitasse vagamente que havia outros fatores em discussão. A questão da soberania da mulher sobre o próprio corpo é um deles. Que obrigação tem um ser humano de abrigar em seu próprio organismo algo que por alguma razão não deseja?

  

Abortar seria uma decisão legítima da mulher, quando ela assim o achar necessário, embora isto não seja uma verdade tão lógica quanto possa parecer. Abortar pressupõe uma gravidez no mínimo consentida e, portanto, uma parceria. O que derruba imediatamente a teoria da decisão solitária, já que as parcerias determinam além da co-autoria, uma co-responsabilidade.

  

Restava discutir a polêmica questão do direito de matar ou não, a partir da infindável discussão a respeito de quando se estabelece a vida. Como se ela tivesse princípio e fim determinados.

  

Talvez, acima de tudo isso, o aborto devesse ser visto não pela ótica da individualidade ou da parceria, menos ainda pelos códigos morais e civis, mas sim pela perspectiva da harmonia vital, da evolução humana e do equilíbrio energético. A vida é o princípio dos elementos naturais e sua imortalidade está contida neles.

  

Como o fogo, a terra, o ar e a água, a vida não se extingue e sim se transforma. E apenas um elemento natural pode modificar outro. Só o ar e a água transformam a terra em barro. Só o fogo e o ar transformam a água em vapor. Assim abortar não é extinguir um processo vital, mas sim desviá-lo para um estado desconhecido. A capacidade de gerar não é uma escolha; é inerente à natureza cósmica, ao universo, continuamente em gestação e expansão. Animais não abortam, plantas não abortam, contribuindo constantemente para a evolução das espécies e do todo.

  

Fosse o aborto tão natural quanto a reprodução e provavelmente ainda estaríamos em cima das árvores ou nas cavernas.  Lançada no desconhecido, a energia vital pode assumir formas inesperadas e inexplicadas. A suavidade de milhares de ghandis abortados pode ter se transformado em milhares de violentos stalins espalhados pelo planeta.

  

Assim tornar-se dique da vida pode ter conseqüências terríveis, não importam os códigos éticos tolamente estabelecidos pelos homens. Acima deles e indiferente a eles, paira a força e a energia vitais.

  

O agente deste desvio da corrente energética mais cedo ou mais tarde, mais ou menos intensamente, será atingido pelos efeitos da ação, assim como toda a humanidade e por extensão, a própria divindade.

  

Alfie nunca conseguira coordenar muito bem todas estas idéias, mas seu íntimo dizia que havia alguma coisa de perigoso no aborto, muito mais que de errado, imoral ou cruel.

  

Rose Helen não estava interessada nesta questão somando à frustração da carreira interrompida no início  -uma espécie de aborto artístico involuntário- a frustração também pela quase certa infertilidade. Rose Helen continuava com sua vida indefinida, ainda desaparecia por longos períodos do dia, talvez vagando pelos mesmos lugares. Entretanto estava cada vez mais silenciosa, mais distante. Parecia também beber menos, ainda bem, pensava Alfie enquanto aguardava o dia de substituir Bill Wharton, que breve se aposentaria como chefe dos porteiros do Woolworth.

  

Isto seria para ele uma forma concreta de melhorar sua condição de vida para juntar algum dinheiro e partir para seus sonhos com maiores chances, desta vez. Embora Rose Helen não mais tocasse no assunto, Alfie achava que a música permanecia presente em seus pensamentos.

  

Quem sabe com um salário maior ele pudesse economizar o suficiente para comprar uma casinha na City Island e investir novamente na carreira artística de Rose Helen. O momento que eles vivem não era exatamente dos mais felizes, porém ainda estavam juntos.

  

É verdade que o cheiro de suor e sexo praticamente desaparecera do apartamento da 135 St., embora permanecesse o de maconha e a este somara-se o de incensos indianos, que Rose Helen passara a apreciar, enquanto mergulhava em longos períodos de silêncio e aparente meditação.

  

Por tudo isso Alfie achava melhor se apressar e ir até o Mount Morris Park, fosse lá qual fosse a razão que Rose Helen encontrara para estar lá. Alfie caminhou até a Madison Av. e por ela desceu até o Mount, evitando assim passar pelos principais redutos da fauna noturna, embora ainda fossem 3 horas da tarde de um feriado.

  

Mesmo desertos aqueles lugares tinham o poder de embaralhar seus pensamentos. As luxuosas mansões vitorianas dos judeus endinheirados, já próximas ao Mount Morris Park e da Lennox, davam um outro aspecto ao Harlem. Passou em frente à St. Martin Episcopal Church e em seguida pela Temple Israel, onde aos sábados um coral de negros cantava gospels em hebraico, por mais estranho que isso possa parecer.

  

Entrou no parque e dirigiu-se rapidamente para a torre de vigia contra incêndios, em volta da qual uma pequena multidão já estava reunida. Estava quase chegando junto a ela quando soou o sino sob a plataforma e surgiu sobre um palanque ali montado, Marcus Garvey.

  

Após longos minutos de aplausos e saudações diversas, fez-se um silêncio de catedral e ele começou a falar. Fez um inflamado discurso em defesa da soberania da raça negra e da sua superioridade. Invocou deuses africanos e brandiu argumentos que garantiam a sua superioridade sobre todos os outros deuses. Esbravejou contra o poder econômico enfeixado nas mãos dos brancos, judeus, italianos mafiosos e outros agrupamentos raciais inferiores. Exortou veementemente a todos para a necessidade de orgulho racial negro e da ajuda mútua.

  

Falava empolgadamente, enquanto Alfie procurava entre a multidão enxergar Rose Helen. Mesmo pouco atento, era impossível não escutar o que Marcus Garvey falava e de repente Alfie percebeu que ele estava contando a história de uma jovem e talentosa cantora negra, que não recebera o apoio necessário de seus irmãos, impedindo assim uma carreira promissora e principalmente útil para o movimento negro e o bem de todos.

  

Marcus afirmava ser este um exemplo perfeito de como os negros estavam perdendo seu espaço exatamente pela falta de solidariedade, como havia entre os judeus, os mafiosos e os banqueiros. Alfie prestou um pouco mais de atenção à narrativa de Marcus Garvey, começando a achar familiar aquela história.

  

Esticou-se todo para ver sobre as cabeças à sua frente, o que acontecia, quando a multidão começou a aplaudir delirantemente. Não precisou ouvir o nome Rose Helen ser gritado pelos alto-falantes, pois a reconheceu imediatamente quando entrava no palanque, vestindo um discreto vestido cinza, um colete de pequenas flores pretas e brancas que ele lhe dera e um vistoso chapéu vinho onde estava espetada uma rosa branca. Ainda por entre aplausos e palavras entusiasmadas, Rose Helen começou a cantar numa voz afinadíssima e potente, blues de Bessie Smith e canções de protesto do Mississipi.

  

A multidão silenciou e escutava Rose Helen embevecida, que cantava agora Stars And Strips Forever, num inédito arranjo para blues. Após quatro ou cinco músicas, Marcus Garvey deu por encerrado o espetáculo e a solenidade, desaparecendo abraçado com Rose Helen por trás do palanque.

  

Alfie, sem acreditar ainda no que acabara de ver, avançou com dificuldade por entre a multidão que lentamente se dispersava, tentando chegar até os bastidores. Encontrou Rose Helen e Marcus cercados por pessoas que os cumprimentavam animadamente.

  

Furou o cerco até chegar ao lado deles e ficar de frente para ela, mudo e imóvel. Rose Helen parecia estranhamente sóbria ao vê e ao aproximar-se dizendo:

  

- Está surpreso amor? Depois te explico tudo, pois agora vou com Marcus até a 52 St.,  The Street. Vamos a uma festa de gente famosa e ele vai me apresentar a uns amigos dele. Mas eu não demoro. Manhattan é logo ali.