Cultura

IV CAPÍTULO DA NOVELA "MANHATTAN É LOGO ALI", POR MARCO GAVAZZA

Veja
| 20/09/2009 às 01:18
Representação de uma casa de espetáculos no Harlem de NY
Foto: Sonymonk
 

CAP. 4

24 de Dezembro, 1922. 180 W135 St.,YMCA.

 

Uma semana de casa vazia foi o resultado da única oportunidade que Rose Helen teve em todo o ano de se apresentar em público, em setembro, no YMCA. Alfie esquecera o episódio do baixinho com o terno azul listrado na noite da festa de casamento, atribuindo ao nervosismo e ansiedade -conjugados com a maconha e o álcool- a atitude de Rose Helen.

  

Passado o primeiro impacto, pouco tempo depois ele estava novamente empenhado na carreira de Rose Helen. Tentara conseguir pauta durante todo o primeiro semestre de 1922, inutilmente. Ela fez testes, ele procurou seus amigos da noite, noite após noite, sem nada conseguirem além de vagas promessas. Até ele perceber que a única chance que ela teria de ser escalada para um recital, seria pagando.

  

Durante algum tempo Alfie tentou negar a si mesmo esta evidência, até quando só viu como opções, desistir ou pagar. Conseguiu o dinheiro emprestado com o velho Bill, convencendo-o de que a partir dali Rose Helen deveria tornar-se um sucesso em pouco tempo, recuperando o investimento e abrindo todos os palcos do Harlem e da Broadway.


Bill Wharton encantara-se com o casamento de Alfie e Rose Helen, passando a considerar-se padrinho da futura criança que deveria nascer. Passou a ajudar Alfie sempre que este necessitava de pequenos favores ou pequenas quantias. Relaxou sua vigilância a respeito do horário, pois sabia que Alfie andava fazendo serviços extras para enfrentar as despesas de casa.

  

Além do lado financeiro da história, haveria também o lado emocional, pois a esta altura Rose Helen já duvidava de suas próprias chances como cantora. Lena Horne lotava diariamente o Cotton e na porta do Sugar multidões disputavam um lugar para conhecer a música inovadora de Gladys Knight. Diziam até que elas já estavam comprando casas em Sugar Hill, onde morava a elite musical do Harlem, como Countie Basie, Duke Ellington e Cab Calloway.

  

Rose Helen continuava vagando entre o apartamento cada vez menor, os cabarés mais baratos da 156 St. e a Abyssinian Church aos domingos, onde cantava a missa gospel e rezava para que alguma coisa nova acontecesse em sua vida, agora monótona e tensa.

  

No ar do apartamento na 135 St. flutuava cada vez mais o cheiro de maconha e menos o de sexo e suor.

  

Por isso era importante a temporada no "Y" mesmo tendo que pagar por ela. Alfie pagou silenciosamente, com a convicta esperança de que Rose Helen nunca viria saber disso. Mas, nunca é muito tempo para um mortal, que não pode sair desta vida antes que saiba de tudo que nela aconteceu. Rose Helen um dia fatalmente iria saber, nem que fosse ao instante de sua última nota murmurada.  Ele pagou e a curta temporada foi um fracasso.


Para a estréia compareceram as mesmas pessoas que haviam estado na também fracassada festa de casamento, exceto é claro, o baixinho de terno azul listrado. Alguns curiosos ocuparam as primeiras filas do auditório do "Y" para aplaudir Rose Helen sem qualquer entusiasmo.

  

De nada adiantou o caprichado repertório, a voz cuidadosamente colocada, o vestido que lhe deixava revelar as coxas grossas e rígidas ou o trabalho de divulgação que Alfie conseguira fazer, até mesmo colando cartazes impressos na gráfica da Woolworth Five & Dime com a conivência de Bill Wharton, em todos os postes do Harlem, do Central Park até o Cloister e Fort Tryon, sem falar na informação passada verbalmente em todos os bares, em todas as lojas, em todos os cabarés, cafés e restaurantes.

  

No dia seguinte não se escutava qualquer comentário no Harlem sobre a performance de Rose Helen. Nenhum um elogio e o que é muito pior: nenhuma condenação.

  

Também eles, numa espécie de acordo implícito, não tocaram no assunto, não fizeram qualquer comentário a respeito, não questionaram coisa alguma, falando-se o indispensável durante algum tempo, enquanto Rose Helen amargava sua frustração e Alfie sofria com a realidade.

  

Para o Harlem, o Bronx, Manhattan, e principalmente para a 52 St., entre a 5th. e a 6th. Avs., conhecida como a Swing Street ou apenas The Street para os mais iniciados, onde reinava o que de melhor havia no show business, era como se o espetáculo não houvesse acontecido.

  

Esta seguramente é a pior de todas as armas psicológicas que se pode usar contra um ser humano. A indiferença. O silêncio pode ferir mais profundamente que a maior das ofensas, o mais baixo dos insultos. O distanciamento puro e simples impede respostas, anula argumentações e perpetua a mágoa.

  

Toda a história da humanidade se construiu através do diálogo, da discussão, do desentendimento e da posterior concordância ou aceitação. Dos grandes debates surgiram inimigos mortais ou aliados imbatíveis. A tese e a antítese se unem na síntese, que imediatamente torna-se uma nova tese, para gerar uma outra antítese e se unirem novamente em outra síntese e assim por diante, provocando um contínuo avanço de idéias.

  

O questionamento, o ataque, a réplica, a tréplica, trazem embutidos em sí o crescimento de pelo menos um dos combatentes, pois mesmo que apenas o íntimo de cada derrotado reconheça a derrota, lá neste mesmo íntimo se instala um alarme, um aviso de que é necessário corrigir posições, rever atitudes ou avaliar melhor os pensamentos.


A premeditada mudez, diante dos senadores romanos, diante do escárnio do povo, diante de seus próprios seguidores, diante da pena máxima e até mesmo diante da dignidade dos seus princípios, acabou por fazer de uma filosofia rudimentar e repressora, uma liderança com sobrevida para mais de 2000 anos de tola obediência.

  

Silenciar é negar ao ser humano o direito de existir com seus erros e seus acertos questionados e portanto, vivos. Silenciar é matar em sua forma mais humilhante, quando se deixa vivo o morto, para que possa acompanhar a própria decomposição. A dignidade de um debate não está no nível intelectual ou no peso das palavras utilizadas, mas em sí próprio.

  

Por isso o resto do ano para Rose Helen e Alfie perdeu muito do sentido e do brilho que eles vinham vivendo juntos. Por isso também mudaram os cheiros no ar e mudou a rotina de suas vidas. Alfie chegava cada vez mais tarde ao apartamento, sempre cansado.  Os serviços extras não tinham mais um objetivo definido, porém estavam incorporados aos seus costumes e serviam agora para justificar o atraso diário em voltar para casa.

  

Mesmo quando não havia nada para fazer, Alfie descia do metrô uma estação antes ou depois da Lennox e perambulava pelo bairro, agora evitando os nights clubs e até mesmo o Cotton.

  

Certa vez surpreendeu-se de repente entrando no Daisy Chain, na 141 St., perto da Lennox. Quando percebeu onde estava, já havia pagado os cinco dólares, tirado a roupa e encontrava-se cercado de prostitutas, fumando ópio e participando de mais uma das incontáveis experiências de sexo grupal que aconteciam no próprio saguão do Daisy, estimuladas por Hazel, a agitada proprietária da casa. Alfie de repente se deu conta do que estava fazendo, vestiu-se rapidamente e foi para casa. Naquela noite não trocou uma palavra com Rose Helen. O cheiro no ar daquela noite limitou-se ao adocicado da maconha de Rose Helen.

  

Esta por sua vez, cada dia parecia menos jovem, como se a vida se lhe passasse não em dias isolados, mas em punhados deles de cada vez. A jovialidade se distanciava cada vez mais dela, assim como ela se distanciava da sua música e se aproximava da depressão. Passava períodos cada vez mais longos distante de casa, andando pelo bairro. Uma ou duas vezes por semana pegava o metrô e descia na Brodway, para olhar as fachadas dos teatros e das casas de show, num misto de saudade e autoflagelação.

  

Grandes luminosos anunciavam a estréia breve dos irmãos  Adele e Fred Asteire no musical "Lady be good" de George Gershwin. Por que então ela nunca estrearia?

  

O tempo a tirara da melancolia instalada depois daquela temporada no YMCA, porém a lançara diante de um vazio difícil de ser preenchido. Por vezes pensava em voltar a ensaiar e insistir mais uma vez na noite. Certa vez chegou até a entrar no Small's Paradise, rival do Cotton, mas não teve coragem de tentar falar com ninguém. Faltava-lhe agora o incentivo de Alfie, pouco importava se fruto de devaneios ou não. Durante aquele tempo em que acreditaram poder invadir os palcos do Harlem e depois de Manhattan, de certa forma ela fora feliz. Agora restava o rum, o gim, a maconha, às vezes até o ópio. Sempre em quantidades maiores e por mais tempo.

  

Aquela noite de Natal de 1922 tinha o peso de um ano em que a esperança e a felicidade não estavam na lista de presentes. A festa ser no YMCA tornava o momento ainda mais tenso. Pela primeira vez desde a desastrada tentativa de brilhar no hit parade, eles voltavam ao lugar.

  

Alfie chegara pouco depois das 10 da noite, após esperar por Rose Helen no apartamento e deduzir que ela deveria estar andando pelas ruas. Ansioso, ele temia que ela não chegasse antes da meia-noite, deixando-o exposto aos comentários sempre ácidos dos conhecidos. Ele circulava pelo salão disfarçando o nervosismo, cumprimentando um e outro, parando às vezes para uma rápida troca de frases com os mais chegados.  O assunto do espetáculo de Rose Helen e sua carreira permanecia tabu, sendo evitado por todos.

  

Já suas andanças pelas noites e pelo álcool eram discretamente comentadas por perto de Alfie, que aqui e ali percebia palavras ou gestos irônicos. Seguia entretanto sem dar importância. Porque assim como Rose Helen, secretamente ele alimentava a esperança de retomar todo o trabalho de promovê-la e tentar novamente a música. Faltava alguma coisa acontecer para que isso fosse possível. Alfie não sabia exatamente o que. Mas percebia a necessidade de um acontecimento qualquer que pusesse novamente em marcha toda a engrenagem de sonhos e motivação.

  

Passava um pouco das 11:30 quando Rose Helen surgiu na porta principal do salão de festas do YMCA. O conjunto apropriadamente tocava "Don't explain". Alfie demorou a acreditar que Rose Helen estava ali parada, enfiada num vestido preto justíssimo, com generosas fendas laterais que descortinavam suas coxas brilhantes, os rígidos bicos dos seios delineados sob o tecido fino, maquilagem pesada e um cigarro aceso entre os dedos.

  

O olhar vagava pelo salão à procura de alguém conhecido, enquanto todos se viravam para olhá-la. Ao descobrir Alfie, Rose Helen deu um passo à frente e tropeçou sobre um garçom que passava equilibrando uma bandeja repleta enquanto olhava incontido para seu corpo. Caíram ambos ao chão com um grande barulho de copos e garrafas quebrando, sobre o som metálico da bandeja que imitava os pratos de uma bateria.

  

Alfie imediatamente correu até ela e a ajudou a levantar. Com um sorriso mecânico ela recompôs o decote, ajeitou o cabelo com as mãos e falou para ele numa voz pastosa, entre o cheiro gim:


-Saí para beber um pouco, mas voltei a tempo, não foi amor? Manhattan é logo ali.