Cultura

3º CAPÍTULO DA NOVELA "MANHATTAN É LOGO ALÍ", POR MARCO GAVAZZA

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| 13/09/2009 às 00:08
Tela de Reginald Marsh, pintor negro (1898-1954) e que retratou o Harlem em inúmeras pinturas
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CAP. 3

Maio, 1921. Harlem, 200 W135 St., NY


Achar um pequeno apartamento ao lado da YMCA, com o dobro do tamanho do quarto que ocupava, por US$ 10 por semana, não foi determinante para que Alfie e Rose Helen passassem a morar junto, mas teve fundamental importância. Outro fato foi decisivo.

  

A necessidade de estarem sempre um com o outro havia crescido a cada dia, tornando as jornadas de trabalho de Alfie, meras horas de espera pelo instante de se enfiar no metrô, na linha IRT recém inaugurada e chegar ao apartamento no Harlem, onde normalmente Rose Helen já o esperava. As noites passavam indiferentes pelos dois, que sequer percebiam os movimentos da rua ou dos astros.


O canto despretensioso e espontâneo de Rose Helen deu lugar a ensaios, tão convencida estava ela -em parte cedendo a insistentes argumentos alinhados por Alfie e em parte porque no seu íntimo sempre desejara isso- de que deveria tentar a carreira profissional. Além da bela voz, do repertório exuberante e da beleza de Rose Helen, a intimidade já criada por Alfie com o mundo noturno do Harlem, seus cabarés, night clubs e sua relativa aproximação com figuras importante do circuito jazz/blues, também ajudaria; pensavam.

  

Os ensaios substituíram o brincar de cantar. As garrafas de vinho, gim e -de vez em quando- rum do El Barrio, substituíram os feijões, os frangos, as costeletas de porco e o milho.  Ao constante e inevitável cheiro de sexo e suor, veio juntar-se o cheiro adocicado de maconha.

  

O menor interesse de Alfie pelo trabalho logo se tornou natural e visível. Quando às 08h30min da manhã de dois de janeiro de 1921, primeiro dia de trabalho do ano, o Sr. Bill Wharton chamou Alfie até seu escritório, este já sabia o que iria ouvir. O que na verdade o surpreendeu foi a sua própria resposta, após a longa advertência do Sr. Bill, circunspeto e cuidadoso ao mesmo tempo, pois sempre admirara Alfie como funcionário e como ser humano.


 -Sr. Bill, eu vou casar e minha vida vai mudar. Tudo vai ficar bem.

  

Alfie custou a acreditar que tivesse dito aquilo, porém o largo sorriso do velho Bill registrava que alguma coisa se transformara em sua atitude. A afirmativa, depois realidade, anunciada por Alfie naquele instante, iria provocar muitas transformações além da expressão facial do Sr. Bill, mas isto só tempo mostraria.

  

O final do mês de maio já encontrava Alfie e Rose Helen casados, às voltas com suas ainda escassas economias, para conseguirem fazer uma festa. O motivo oficial da planejada festa seria evidentemente o casamento dos dois, mas por trás disso se escondia a intenção de trazer o pessoal da música para mais perto deles, cada vez mais dispostos a abrir espaço para Rose Helen na noite do Harlem e até quem sabe, de toda Manhattan.


Assim, apesar de sua dificuldade financeira Alfie não enxergava obstáculos para fazer da festa um sucesso. Vizinhos da Young, que abria seu palco para cantores negros, interessada em modificar a imagem encenada nos musicais da Broadway, eles certamente seriam notados, pela presença de pessoas influentes, que Alfie acreditava docemente viriam. Isto seria maravilhoso para dar destaque ao canto cada vez mais afinado de Rose Helen.

  

Velhas receitas foram arranjadas com parentes, uma caixa de rum conseguida no Spanish depois de inúmeras idas e vindas, muita gorjeta e paciência. O apartamento quase não tinha mobília, o que não seria problema. Almofadas espalhadas pelo chão dariam um toque de descontração à festa, deixando todos mais à vontade.

  

Alfie era um sonhador sem limites e em seu otimismo delirante, encontrava justificativa para todos os esforços.  Alfie não percebia muito bem a fronteira entre o otimismo, o pensamento positivo e o sonho, a irrealidade. Porque a matéria de que são feitos os sonhos, é a mesma que compõe os delírios, sendo assim necessária uma permanente vigilância para que elas não se misturem.

  

Sendo o estado de paixão naturalmente dispersivo, Alfie deixava abertas as passagens da tênue fronteira, quando o assunto era Rose Helen. Não perceber o que separa o otimismo do sonho é um erro difícil de ser evitado, pois a busca pelo estado de pensamento e energia positivos, é uma constante na maioria dos seres humanos. Alguns se dispõem a enfrentar a vida pelo seu lado sombrio, achando que as tragédias são inevitáveis. Enganam-se. Os fatos são inevitáveis.

  

A visão que se terá sobre eles, no entanto pode ser escolhida e aprendida. O ânimo positivo certamente tornará suportáveis momentos difíceis, permitindo até que se tire deles algum ensinamento, alguma perspectiva, alguma sabedoria. Já os sonhos, os delírios, os devaneios; estes machucam.

  

Inalcançáveis pela realidade, perpetuam-se no pensamento, levando a um estado próximo da desordem mental, que se espalha por todos os sentidos e por todos os poros da razão. Não perceber a vida em sua verdadeira face pode ser uma armadilha cruel, que tira a liberdade e tira também a consciência disso. Não perceber o que nos cerca em todas as suas cores pode levar por caminhos sem volta, atalhos intermináveis e veredas ilusórias.

  

De nada adianta sentar-se na arquibancada e imaginar Ted Giant encestando 40 bolas de trinta jardas contra os NY Bulls. O delírio das torcidas não exerce qualquer influência sobre o talento dos jogadores, a trajetória das bolas e a receptividade das cestas.

  

Na vida, o único lugar digno é dentro da quadra, jogando o jogo de acordo com sua capacidade de fazer o melhor. Ser platéia é estar fora da vida, ao lado dos sonhadores delirantes que se instalam forçosamente na condição de jogadores  de uma ilusão. O jogo de existir só é real quando se está dentro dele e se sabe exatamente o que aconteceu a cada jogada.


Alfie no momento se encontrava na platéia, sozinho na platéia, de uma ribalta inexistente.

Quase ninguém foi à festa de Alfie e Rose Helen, na noite de 30 de maio, além dos próprios parentes e de amigos mais chegados. Um ou outro personagem ligado ao show business apareceu, mais pelo rum disponível que por qualquer outra coisa. Aquela noite, depois de tantas outras fugidias, parecia não passar.

  

Alfie passeava inquieto, entre a conversa sempre repetida de Aunt Evelyn, as garrafas de rum, a comida pouco elogiada e os pouco elogiáveis assessores do Sugar, do Cotton Club e outros night clubs. Ninguém do "Y" se motivara a ir até lá. 

  

Entediado e frustrado, Alfie vez por outra retornava ao delírio, recompunha a expressão distante e eufórica, para chegar a Rose Helen e informar-lhe que talvez Duke Ellington estivesse à caminho ou que aquele baixinho de terno azul listrado estava cotadíssimo para tornar-se agente de estreantes do Cotton.


Rose Helen sorria por entre os lábios molhados pelo gim e sumia mais uma vez rumo ao banheiro e a mais um cigarro de maconha. Recusou-se a cantar qualquer coisa, alegando nervosismo.

  

Não se sabe exatamente em que momento Alfie sentiu falta de Rose Helen na festa. Ele acabava de escutar mais uma vez Aunt Evelyn contar como ficara nervosa ao descer do metrô pela primeira vez em Lennox com West 135, quase ao lado dali.

  

Procurou Rose Helen com um rápido olhar, que em segundos percorreu o pequeno apartamento e evidenciou sua ausência. Talvez ela estivesse lá fora, recebendo alguém que chegara vindo do "Y", ao lado da agonizante festa. Procurou as escadas imaginando encontrar Rose Helen, certamente lá embaixo, na porta do prédio. Encontrou-a mais rápido que supunha.

  

Encontrou-a no primeiro lance da escada, enroscada com o baixinho de terno azul listrado, beijando-lhe alucinadamente a boca enquanto uma das mãos passeava entre as pernas das calças de seu indisfarçável traje.  

  

Alfie parou perplexo.

  

O baixinho de terno azul listrado desvencilhou-se de Rose Helen e desceu correndo o que ainda tinha pela frente da escada, saindo do prédio quase correndo. Rose Helen passou as costas da mão direita na boca enrubescida não mais pelo batom, arrumou descuidada o vestido e disse-lhe calmamente:

  

-Este é o caminho, amor. Por ele, Manhattan é logo ali.