Cultura

SEGUNDO CAPÍTULO DA NOVELA "MANHATTAN É LOGO ALI", POR MARCO GAVAZZA

Veja a narrativa
| 06/09/2009 às 00:03
Nos anos 1920, no Harlem de NY, os negros sofriam com a discriminação racial
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Numa morna madrugada de abril, Alfie conhecera Emmily Rose Saint Helen Powell, ou apenas Rose Helen, num night club barato da 146th St., já que naquela época o Sugar Cane, o Cotton Club e outros requintados nightclubs do bairro, não admitiam negros por perto, muito menos na platéia, embora exibissem espetáculos de artistas negros, como a estréia de uma nova cantora chamada Sarah Vaughan ou os recitais do imprevisível Duke Ellington.


O Harlem era então o playground dos brancos endinheirados, que subiam desde o East Village em busca de farra e álcool, difíceis em Downtown com a Lei Seca e fáceis no Spanish Harlem, o El Barrio. Negros portanto, só nos palcos para distrair os brancos.

  

Alfie se encantara com Rose Helen por sua jovialidade, sua beleza e por ela conhecer todas as letras dos velhos gospel que ele tanto gostava, mesmo que ainda não tivesse passados dos 19 anos.

  

Rose Helen trazia para as madrugadas de Alfie uma juventude que ele não experimentara, sempre preocupado estivera em chegar logo à maturidade e à estabilidade da vida, mesmo que prematuramente.

  

Alfie nunca se dera conta de que a vida tem seu próprio ritmo e que a serenidade diante dela não vem da estabilidade, mas da maturidade. E que a maturidade não tem hora pra se instalar em ninguém. Ela tanto pode acontecer aos quinze anos, embora seja pouco provável, como pode nunca acontecer. Não é possível estabelecer etapas para a vida e menos ainda tentar pular algumas que a própria vida trás em si.


Estar preparado para atravessar os momentos decisivos da vida com serenidade significa necessariamente ter passado por outros deles em desespero. Porque, pois mais doloroso que seja o momento, ele sempre passa deixando lições.


Só o pranto ensina a não chorar, só o labirinto ensina a escolher os caminhos certos, só a escuridão ensina a ver além das trevas. Quem nunca sofreu por amor, jamais saberá o que é amar, assim como quem jamais odiou nunca aprenderá a perdoar.

  

Todos nós ansiamos por aquele estágio da sabedoria em que as surpresas não surpreendem até a perplexidade, as decepções não decepcionam até o desencanto, as alegrias não alegram até a euforia, as emoções não emocionam até o descontrole e as feridas não ferem mortalmente.


Este é o momento em que percebemos a mecânica da vida, sua lógica sempre futura e nos permitimos viver em paz. Há quem viva isto sem ter passado pelo aprendizado anterior, o que não significa haver alcançado a serenidade, mas permanecer na insensibilidade, estágio que às vezes dura toda a eternidade.

  

Não viver também é uma forma de imortalidade.


Mas nesta pequena imortalidade se perde tudo o que vida oferece de real e que serve para nos habilitar a uma nova vida. Nunca se chega à serenidade por uma decisão, mas sim pela capacidade de tirar de cada fato aparentemente aleatório da aventura de viver, o seu verdadeiro significado. Como isto é difícil de ser aprendido, ela, a vida, repete estes acontecimentos ao longo do tempo, tantas vezes sejam necessárias até que aprendamos.

  

As vezes uma existência não é suficiente para que se tire as lições indispensáveis ao crescimento, o que retarda a caminhada até o Sereno Conhecimento. Mas todos chegaremos lá, um dia qualquer, em qualquer tempo, de qualquer jeito.  Pelo menos era assim que Alfie pensava.

  

Talvez por isto ele tenha sido colocado aos 30 anos, mais uma vez diante da juventude que ele pensou ser possível dispensar. Como se a juventude não fosse um dos momentos mais intensos do aprendizado da vida, quando todas as emoções são mais facilmente suportáveis.

  

Os resultados de cada experiência acontecida na juventude só costumam surgir bem mais tarde, porém são fundamentais. Deles se extrai tudo o que mais adiante irá compor o mapa que orientará cada um de nós na busca interminável e constante. Do mapa para a planta da cidade, da cidade para o bairro, para a rua e finalmente para a porta definitiva diante da existência.

  

Rose Helen provavelmente surgiu para Alfie naquele instante não como uma pessoa, mas como um propósito da vida.

  

Numa das muitas noites em que se encontraram para conversar, cantar gospels e saborear pratos da cozinha cajun, Rose Helen queixou-se para Alfie por levar uma vida nômade, acompanhando sua mãe viúva e que se mudava constantemente da casa de um parente para a de outro.

  

Alfie levou-a para seu pequeno conjugado num imenso e decadente conjunto de apartamentos na Hamilton Av. quando o dia já ameaçava amanhecer. Beijou-a e se amaram pela primeira vez. Pela primeira vez Rose Helen teve seu sexo pequeno e quente penetrado com suavidade, pela primeira vez ouviu palavras doces enquanto oscilava macia o corpo delgado, pela primeira vez gozou com um homem dentro dela.


Pela primeira vez Alfie esteve próximo da serenidade e pela primeira vez chegou tarde, muito tarde ao Woolworth Building, entre a Park Place e a Barcley St.


A partir daquela madrugada de abril de 1920, Alfie e Rose Helen passaram a se encontrar todas as quintas-feiras, para tentar entrar no Sugar Cane sem jamais conseguirem; desistir e beber, cantar e dançar em qualquer night club barato; depois irem para o conjugado na Hamilton Av., cozinhar frango com feijões, gengibre, folhas de hortelã, bacon e banana; e em seguida fazer sexo.

  

Em pouco tempo acabaram por eliminar as tentativas de entrar no Sugar Cane e esticar para outro lugar, pois Alfie não podia chegar atrasado todas as manhãs de sexta-feira. Logo depois eliminaram a exclusividade da quinta-feira, já que não havia mais esticada alguma, e passaram a se ver diariamente.

  

Em seguida eliminaram também a cozinha crioula ou cajun, preenchendo todas as noites apenas com o diversas vezes repetido enlace frenético dos corpos, os gemidos contidos de Rose Helen, o cheiro acre de suor e sêmen espalhado no ar e o posterior sono incontido.

  

Em novembro de 1920, seis meses após se conhecerem, Alfie e Rose Helen acreditavam estar se amando. O encantamento pela juventude e a juventude encantada com o encantamento, criavam uma névoa na realidade, suavizando todos os contornos e fazendo a vida parecer mais possível.

  

Ver tudo através dos filtros da paixão trás uma sensação de beleza e paz que desperta os sentidos para coisas que sempre estiveram por perto e jamais haviam sido percebidas, como a nobreza do por de sol entre os cada vez mais altos prédios, ou a dignidade da Trinity Church, enclausurada pelos edifícios da Wall St. Ou a flor que se abre de repente numa janela pobre das favelas nas redondezas do Cloisters ou ainda a música das crianças brincando pelas ruas.

  

Até a Washington Bridge pode parecer um pontilhão de Veneza quando se está apaixonado e à espera de gôndolas. O súbito gosto pela poesia, por músicas dolentes e dilaceradas, um inexplicado bom humor constante, tudo isto denuncia um momento muito rico e muito harmônico que se instala no ser humano, junto com uma inevitável alegria e vontade de viver, quando a paixão é correspondida.


A paixão não é um sentimento, entretanto é com certeza, a emoção que mais próxima chega disso. Estar apaixonado, por outro lado, significa também considerar possíveis todas as loucuras, imaginar desfechos inesperados para situações meramente rotineiras, fornecer ao organismo overdoses de adrenalina e testosterona; para exigir dele quantidades gigantescas de vigília, esperma e lágrimas.

  

Se a paixão não encontra resposta semelhante, acrescente-se a isto taquicardias, descontrole emocional, agressividade e depressão. Este funcionamento anormal do corpo gera um desempenho letárgico da razão, fazendo com que tudo necessite de um tempo muito longo para ser percebido de forma clara, o que por vezes sequer chega a acontecer.

  

Como naquela noite de novembro, quando Alfie custou a perceber que havia algo de diferente, mesmo após Rose Helen estranhamente haver preparado um chop suey de porco agridoce no  lugar da comida criola, cantado diversos blues em vez dos constantes gospel e haver recusado praticar sexo anal por toda a jornada.

  

Alfie tampouco chegou a entender que havia algo de pouco usual em tudo isso e o que poderia significar, mesmo quando Rose Helen às 2 da manhã, após haver se vestido, olhou para ele de forma inesperada e disse enquanto corria o longo zíper das costas do vestido:

  

-Amor, eu vou até a Broadway encontrar uns amigos jornalistas num hotel chamado Algonquin. Não se preocupe comigo. Manhattan é logo ali.