Cultura

1º CAPÍTULO DA NOVA NOVELA "MANHATTAN É LOGO ALI", POR MARCO GAVAZZA

Vide
| 30/08/2009 às 00:17
Ambientação de Manhattan e do Woolworth Building
Foto: MG

INVERNO, 1959. QUEENS, NY. Ninguém o viu desembarcar do longo trem,  para o passado. O frio da madrugada eliminava qualquer possibilidade de alguém se mover pela noite que trouxera os vagões, tão cansados e vazios quanto o seu solitário passageiro que agora olhava a rua deserta, o tempo espesso, parado de pé junto à calçada da estação, como se aguardasse um intervalo no trânsito inexistente.


Seu olhar denunciava tensão, busca e ansiedade. Seus pés evitavam o primeiro passo adiando por insignificantes momentos o instante daquilo que sabia ser inevitável. Começou a caminhar lentamente com suas pernas movidas unicamente pela velhice e pela hesitação. Na escuridão das ruas anoitecidas seu vulto esguio dava-lhe uma imponência ilusória, pois que carregava uma única mala como quem carrega todo o peso da vida.


Os cabelos brancos e mal tratados de alguma forma pareciam iluminar a noite, confundindo-se devagar com a luz da manhã que ameaçava surgir. Seguiu pela rua andando em paralelo à linha férrea, como se ainda tentasse estabelecer uma inútil ligação com a possibilidade de não estar ali. Até o momento em que foi obrigado a tomar outro rumo, afastando-se dos trilhos definitivamente.


Ele tentava associar alguma coisa do presente com as indeléveis ruas, as eternas praças, as imutáveis casas, as impassíveis portas e janelas que trazia na lembrança de um tempo muito distante. Cruzou bairros ainda desertos, assustando cães sonolentos com o eco dos seus passos e ajudando a acordar operários necessariamente madrugadores. Aqui e ali conseguia ver algum traço do passado numa velha fachada, numa esquina, num muro envelhecido.


No final de uma rua estreita, encontrou uma casa, a única casa que ainda tinha a mesma aparência que sua memória registrava, apenas exibindo as marcas do abandono e dos anos passados por ela. Deteve-se diante da porta gasta.


Por trás dela, estava a razão de tantas e repetidas noites iguais àquela, em que viajava no mesmo trem e chegava até a mesma estação e carregava a mesma mala e o mesmo medo  e desembarcava na mesma madrugada e caminhava pelas mesmas ruas e encontrava a mesma casa e nunca atravessava a mesma porta e voltava à mesma penitenciária muda e à mesma cela úmida e  à mesma vigília compulsória por mais uma mesma noite e mais um mesmo sonho ou um mesmo pesadelo e já nem sabia ao certo a diferença entre um e outro.


Desta vez, o trem fora real e a porta finalmente, era real.


Tudo o que jamais conseguira imaginar fazer quando estivesse diante dela, tornava-se ainda mais vago. O sol já começava a iluminar a rua quando ele empurrou a porta que cedeu com um gemido de dor, de prazer, de surpresa, de perplexidade, de alívio, como costumam ser todos os gemidos.


A casa estava deserta e todas as coisas nos lugares onde sempre estiveram. Seu olhar percorreu a pequena sala, com móveis rústicos e pesados. Os quadros empoeirados continuavam nas paredes outrora brancas. Sobre uma pequena mesa, uma estátua de bronze representando a Justiça parecia sorrir ironicamente, ao lado de revistas e jornais amarelados.


Pegou cuidadosamente o primeiro jornal sobre a pilha e leu a data. 3 de julho de 1928. Deixou cair o jornal, que se desfez e desfez para sempre 30 anos de espera, levantou uma pequena nuvem de poeira e provocou-lhe um acesso de tosse.


Percorreu um pequeno corredor até a cozinha. No chão, o prato de vidro para a água do cachorro, que desistira de esperá-lo. Uma garrafa de vinho vazia sobre a pia. Os armários fechados guardavam toda a louça, as panelas, os talheres, cada coisa em seu lugar, como ele mesmo deixara naquela noite antiga. Lá fora, no pequeno pátio, as plantas mortas e o mato abundante registravam mais fortemente o efeito de longos anos de ausência de qualquer pessoa ali.


Voltou à sala e subiu lentamente as escadas que levavam até o pequeno andar superior. Lá estava o rádio, os poucos livros, a mesa de trabalho, o caderno com histórias escritas e inacabadas, algumas cartas que jamais respondera ou responderia, de pessoas que talvez sequer existissem mais. Num canto da mesa, um pequeno maço de fotografias amarradas por uma fita. Fotografias que sabia nunca mais teria coragem de olhar. Deixou-se sentar mecanicamente numa velha poltrona Berger de gasto veludo azul escuro. Fitou longamente a cama desfeita em frente a ele. No lençol a longa mancha escura, de sangue há muito sem vida.


  


CAPÍTULO 1

Manhã de 3 de Julho de 1928. Downtown, 233, Broadway


O verão estava insuportavelmente quente. Manhattan parecia ferver, ora pelos boatos sobre a Bolsa de New York, ora sob 42 graus de calor. Aqueles primeiros dias do mês de julho pareciam incandescentes.


Suportar uma jornada inteira de trabalho como um dos porteiros do Woolworth Building, ouvindo por todo o dia comentários sobre o risco de investimentos com os  quais sequer sonhava,  enquanto transpirava copiosamente, era duplamente estafante. Pelo menos o dia seguinte seria o feriado do Independence Day, o que permitira um pouco de descanso à sombra das árvores do Central Park.


Embora o número 233 da West Broadway, onde funcionava a sede da Woolworth Five & Dime não registrasse qualquer ameaça aos seus negócios, mantendo toda a sua pompa, Alfred "Alfie" Lee, embora trabalhando muito, registrava semanalmente sua dificuldade em simplesmente viver e permitir algum conforto também para Rose Helen.


Mesmo trabalhando no Woolworth desde a majestosa inauguração quando suas 80 mil lâmpadas foram acesas pelo próprio Presidente, apertando um simples botão lá em Washington, Alfie seguia se espantando todos os dias com os impressionantes mosaicos, esculturas, mármores e bronzes do maravilhoso arranha-céu gótico e sem entender muito bem como é possível se gastar tantos milhões de dólares para adornar um prédio que iria empregar gente ganhando 50 cents a hora.


Alfie entendia menos ainda porque o irritante pastor Cadman ganhara US$ 1 milhão e meio, mais um escritório perpétuo no Woolworth, apenas por te-lo apelidado de Exchange Cathedral.


Só podia ser mais uma das alucinações de Mr. Woolworth, que dormia numa cama que pertencera a Napoleão, instalara uma caricatura de si mesmo -contando dinheiro- em alto relevo no mármore no saguão do prédio e planejava mandar esculpir uma estátua também dele próprio abraçado com o Imperador. Só podia ser.


Alfie e Rose Helen já não viviam juntos há alguns anos, mas ele não descuidava das despesas e vivia tentando sempre dar um pouco mais de dinheiro para ela cuidar de sua vida e esquecer sua pretendida carreira de cantora de jazz, que nunca chegara a lugar algum, embora Rose Helen até cantasse bem. O que ela ganhava agora como costureira era insignificante numa época em que todos estavam passando dificuldade.


Por isso ficava cada vez mais difícil uma passada pelo Sugar Cane para ouvir Lena Horne, no final das madrugadas das terças-feiras, quando as portas eram abertas e os drinques custavam 80% menos. Mesmo agora com o  fim da Lei Seca, quando os brancos voltavam para Downtown e os cabarés estavam entregues novamente às baratas e aos negros. 

  

Há incontáveis meses não entrava num night club para ouvir música e encontrar alguns poucos companheiros que ainda lembravam dele. Talvez inconscientemente ele se mantivesse à distância de tudo aquilo por uma espécie de instinto de preservação. Alfie costumava até pouco tempo atrás dormir às 8 da noite toda terça-feira, logo ao chegar a casa, para poder acordar às 3 da manhã e ficar rondando no Sugar Cane até o sol nascer, todos irem para suas casas e ele para o Woolworth.

   

Naquele dia 3 de julho de 1928 Alfie não iria dormir às 8 da noite da terça feira, nem iria de madrugada para a porta do Sugar Cane.

   

Pretendia ir direto para o Queens, onde morava numa pequena casa numa ruela escondida próxima à Grand Central Parkway, em Long Island, onde a única coisa que o incomodava era o barulho dos aviões decolando constantemente de La Guardia.

  

Iria responder algumas cartas, ouvir um pouco de rádio e ler o jornal que sempre levava da portaria do Woolworth depois que todos o haviam lido.

  

A vida para Alfie não apresentara nenhuma novidade surpreendente, porém ao menos cessara de colocá-lo no centro de acontecimentos perturbadores e dera-lhe um projeto inesperado que o envolvia e motivava. Assim, poderia escrever bastante tentando contar suas histórias e ir dormir tarde, pois no dia seguinte a única coisa que precisava fazer era deitar na grama fresca do Central Park e descansar.

  

Raramente via Rose Helen, depositando mensalmente em sua conta num banco o que podia economizar. Estavam separados há alguns anos, mas ele sempre fizera isso religiosamente. Nas poucas vezes em que encontrara com Rose Helen, ela estava bastante diferente de todo aquele tempo em que tentaram juntos viver uma vida normal, o que destino se encarregou de mostrar ser impossível.  Já não era tão bela quanto antes, nem tanto pelos anos vividos à sombra do circuito jazzístico, que na verdade não foram muitos, mas principalmente pelos estragos causados pela explosiva combinação de álcool, drogas, sexo e frustração; quando cada um destes componentes potencializa o efeito dos outros, num coquetel devastador.


Ela continuava morando no Harlem, porém totalmente distante do mundo do jazz, que começara a deixar o bairro, de volta para Downtown. Dedicava-se à costura, algumas vezes cantava no coral da Abyssinian Baptist Church em dias de festas e fechava-se em casa para atender os poucos pedido de sua pequena clientela. Parecia haver apagado de sua vida aquela época em gravitava em torno dos night clubs, por órbitas nem sempre muito exatas, refazendo todas as noites um roteiro que acabou por instalar nela uma incontida vontade de subir num palco e brilhar cantando jazz e blues, como Sarah Vaughan, Pearl Bauley ou Gladys Knight.

  

Alfie contribuíra muito para acender nela este desejo incontido, que durante alguns anos dominou e infernizou sua vida.

  

Agora, às voltas com agulhas e linhas, botões e tesouras, tinha uma imagem muito distante da Rose Helen que se enfiava em vestidos tão ousados que hoje sequer conseguiria costurá-los. Embora ainda não chegasse aos 30 anos, Rose Helen não possuía mais a sensualidade de antes, mesmo que as coxas continuassem firmes, os seios rígidos e os lábios sempre úmidos.

  

Em todos os raros encontros com Rose Helen, Alfie sentira certa nostalgia do tempo em que viveram juntos, apesar de sua vida ter saltado dos trilhos por diversas vezes naquele período. Por isso ele se limitava a tratá-la com cuidado, afastando qualquer possibilidade de uma nova aproximação.

  

Vivia em paz agora, com certeza. Enfrentava as dificuldades normais de quem é negro e pouco instruído numa cidade como New York, agora acentuadas com as especulações da Bolsa e a explosão de grandes negócios, que derramavam toneladas de dólares sobre a cidade, criando uma atmosfera de ferrenha competição e ao mesmo tempo de ansiedade, pois ninguém sabia ao certo por quanto tempo aquilo iria durar. Arrasada no pós-guerra, o que desviou todos os investimentos para os Estados Unidos, a Europa começava a dar sinais de recuperação e as grandes transações de Wall Street pareciam cada dia mais cautelosas.

  

Mas tudo isso parecia não ter nenhuma importância quando ele chegava a casa e pegava seus livros para estudar um pouco; ou seus cadernos, diante dos quais passava horas esforçando-se para formular e encadear suas frases, num projeto que o apaixonava, de aprender a escrever contos infantis. Alfie vivia em paz, sim, depois de tudo o que começara oito anos antes.