Cultura

CAPÍTULO FINAL DA NOVELA "UM TÁXI PARA O ALBANNY", POR MARCO GAVAZZA

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| 01/08/2009 às 23:54
Londres, a capital inglesa, cenário de "Um Táxi para o Albanny"
Foto: Divulgação

CAP.  FINAL


28 DE DEZEMBRO, 1949, HIGHGATE CEMETERY


Entre monumentos vitorianos Florence  Dayse Vatumbí Nash, também imóvel  e bela como uma estátua, observava dois funcionários  do Highgate Cemetery  que  pacientemente removiam camadas de pedras e terra  para  chegar até o caixão onde possivelmente estava enterrado o  corpo de Melissa Vatumbí  Nash.


Ladeada  pelos  dois  americanos que numa noite de guerra fizeram George Wesley abandonar seu insípido jantar e sair  para as ruas de Londres enfrentando o frio e os  mísseis, Florence  não  conseguia mover um músculo.  Seus olhos  observavam  o movimento das pás, mas  sua  mente  revia  rapidamente o caminho que  percorrera para chegar  até ali.


Fazia  quase cinco anos após o final  da guerra,  desde aquela tarde terrível  em que encontrara  George Wesley na Champs  Elisèes  e  quando levada por emoções muito fortes, contara-lhe o que realmente Melissa fazia. Foi  tudo muito difícil e ela  sentira uma  enorme piedade  por George vendo sua expressão de imensa tristeza  ao  saber que Melissa  era uma prostituta.


Quando enviou Melissa até  sua casa, Florence sabia que George poderia se apaixonar por  ela, como quase todos  os seus clientes um dia percebiam  se apaixonar, mas achava que depois de ter tido com ela  própria, Florence  Dayse, uma experiência bastante marcante, George saberia como  se relacionar  com Melissa sem se deixar levar por  sentimentos. George Wesley não era mais um menino.


Enganara-se. Naquela  tarde em Paris,  Florence  percebera  em seus olhos. George havia se apaixonado realmente por Melissa e mais, muito  mais  que  havia se  apaixonado por  ela  mesma. 


Entretanto  Florence  em momento algum acreditou  que George não soubesse o que havia acontecido  com  Melissa ou onde ela estivesse.  Alguma coisa  estranha certamente acontecera e George sabia exatamente o que, mas por  uma razão qualquer, não quis revelar. 


No início Florence tentou descansar algumas semanas, mas foi  em vão. Sua cabeça não conseguia  afastar o pensamento de  Melissa e após procurar qualquer notícia, qualquer informação entre todas pessoas que conheciam e em todos os lugares possíveis em Londres, Florence decidira buscar ajuda. Iria  encontrar Melissa  ou  o que  restasse dela, de qualquer forma.


Nossas  mentes  e  nossos  corações foram forjados para suportar  a dor, mas não a  dúvida. Podemos tecer uma intrincada teia de raciocínios que  nos leve  a conviver  com  a tristeza, a perda, o desencontro, o desamor, a saudade ou qualquer outro  destes sentimentos que passam a vida tentando  nos  alcançar. Mas ficamos  em angústia infinita  quando simplesmente não sabemos  o que nos toca.


Possivelmente Melissa estaria morta  por uma bomba qualquer caída numa calçada de Londres, numa  loja,  numa casa  de chá.  Não é surpreendente morrer  na  guerra, mesmo quando não se está armado para o combate.  Mas se estivesse viva, certamente estaria  precisando de  ajuda e já não  contava sequer com George  Wesley.

  

Florence Dayse já percorrera todos os caminhos  de Londres e até em Paris  em  busca  de Melissa  sem qualquer resultado, até que semanas antes, recebera um  convite inesperado para jantar. Era um daqueles americanos  espiões da guerra,  a quem  Florence ajudou  imaginando  possibilidades de uma carreira  posterior, já que o tempo a estava  empurrando lentamente para fora das calçadas públicas e dos leitos alheios. 


Nada  disto aconteceu e  após a guerra ela nunca mais teve qualquer notícia dos americanos,  ninguém manteve nenhum contato com  ela a respeito de serviços de inteligência ou coisa semelhante. Com certeza até  as mínimas informações que obtivera trabalhando com eles teriam sido irrelevantes ou falsas.


Na verdade ela servira apenas como guia até alguns figurões de Londres.  por ter acesso aos seus quartos, além de servir como um bom motivo para erotizar o  tempo daqueles americanos sem graça, sendo descartada imediatamente após a guerra. 



Mas não se arrependia  de  nada. Aquilo ao menos serviu para  fazer passar  mais rápido  uma época infernal e também para apressar o  final de  seu relacionamento com George Wesley, que já adquiria nítidas características de neurose.


George não se conformava  com o fato  dela ter sido ou continuar sendo -ele jamais teria certeza disso- uma prostituta. Seu sentimento oscilava entre o amor doentio e o ciúme descontrolado. Por vezes George parecia querer puní-la por um passado  que não lhe dizia respeito. Em outras ocasiões se sentia ofendido pela liberdade de Florence,  embora jamais tivesse dito uma só palavra que significasse quere-la como companheira. Talvez ele nunca viesse a descobrir, mas teria  bastado uma  simples palavra  sua e  ela teria se tornado a Srª Florence Vatumbí Wesley.


Na maioria  das vezes George revelava uma espécie de amor  incondicional, que entretanto carregava uma elevada  dose visível de dependência. Mandar  Melissa para o Albany tinha  sido  um erro, mas ela não sabia  disso quando  tomou a decisão. Já  havia resolvido ajudar o serviço de  inteligência norte-americano não só pensando numa atividade  futura, mas também para descansar um pouco das rédeas psicológicas de George  Wesley.


Melissa estaria protegida  com  ele, sabia disso e  também  lhe  faria companhia. Ela não tinha qualquer intenção de  magoar George e tinha certeza de  que terminada a guerra,  tudo poderia se  resolver. Nada  disso aconteceu.


Até que recebeu o envelope com o convite. Um dos agentes americanos estava em Londres e gostaria de revê-la.  Florence aproveitou a oportunidade e ignorando as intenções do convite, passou todo o jantar contando-lhe a história de Melissa e seu desaparecimento, pedindo finalmente ajuda para encontra-la.


Seus amigos agentes não hesitaram em colaborar. Rastearam  todos os  caminhos possíveis  e  chegaram até  ali com uma  certa dificuldade, mas sem qualquer dúvida. Finalmente  achavam ter encontrado Melissa, sepultada naquele cemitério  inglês. Naquele  túmulo poderia estar Melissa  Vatumbí Nash,  com  apenas 22 anos se estivesse viva.


Os  funcionários do cemitério  finalmente terminaram de desenterrar o caixão e  tirando-o do túmulo colocaram-no sobre um carrinho, levando-o até a saída do cemitério onde os esperava um sombrio furgão cinza.  O cortejo seguiu direto para o necrotério. 


O furgão cinza com o suposto corpo de Melissa ia à frente seguido por um carro negro e sem personalidade emprestado pelo MR 8.  Um dos americanos dirigia o carro reclamando de que todos estavam na contramão. O outro sentado atrás olhava fixamente a nuca de Florence, instalada no banco do carona. Ouvia-se claramente a respiração de cada um deles.


Chegando ao necrotério os agentes americanos insistiram com   Florence  Dayse para que  esperasse enquanto eles  iriam para examinar  os restos mortais e ouvir a opinião do legista. Relutante, ela obedeceu.


Sentada numa pequena sala cheirando a formol e dor,  olhos fechados, parecia ouvir  o ruído  da tampa sendo retirada,  os passos dos americanos que  se aproximaram da mesa, sutis  porém inequívocos encontros de ossos,  as respirações  ofegantes sob  as  máscaras para  proteger do  odor  da morte, algumas palavras murmuradas, a tampa  sendo recolocada e os mesmos passos desta vez aproximando-se dela.


Não  sabia  quanto tempo se  passou para que tudo acontecesse,  pois seu pensamento  seguia os bifurcados caminhos do passado, como se  pudesse encontrar neles algum desvio, algum  atalho por  onde  pudesse entrar e chegar a um  lugar diferente daquele cemitério, daquele caixão, daquele necrotério  e daqueles ruídos.


Sabia que isto era impossível, mas  sua mente persistia nesta busca insana, procurando  na verdade  escapar  de qualquer forma da desordem que ali se instalara desde que batera naquela  porta  de mogno  do Albany Court Yard, marcada com o  número  308, há quase  exatamente 10 anos atrás.


Florence, a ossada corresponde às características de sua filha. Ela já havia sido identificada aqui neste mesmo necrotério, apesar de toda a confusão da guerra, tantos corpos a identificar, tantos enganos.


Mas não há dúvida. É Melissa. Diversos ossos estão  quebrados  ou esmagados. Ela foi soterrada por um  desmoronamento  durante um bombardeio que atingiu a Tooley Street. Também encontramos registros disto num arquivo aqui mesmo.


Ela, bem, ela poderia até estar dormindo. Estava nua, na cama.  Mas há uma coisa intrigante.  Uma pequena marca de bala  no crânio. Ela levou  um  tiro na nuca vindo de uma arma que não parece ser  de  guerra. Isto só pode ter acontecido instantes antes de  ser soterrada.  


Algo semelhante e mais  intenso ainda que a explosão das bombas alemãs durante a guerra estrondou novamente na cabeça de Florence  Dayse. 


Tooley Street. Nua. Numa cama. George Wesley.


Uma bala?


Sua voz quase  não foi escutada, mas  a expressão de  seu  rosto era tão eloqüente quanto  um  dos discursos do Fürher e também tão indignada.  Antes mesmo  que seus  amigos  americanos pudessem  fazer ou perguntar qualquer  coisa, Florence saiu  correndo pelos corredores  cinzentos do necrotério alcançando rápido o portão. Ao chegar à calçada,  apalpou a bolsa certificando-se de que sua pequena arma estava nela.


Ofegante, fez parar um taxi  que passava  no momento. Entrou quase correndo e  jogou-se no  banco  traseiro. Sua voz trêmula revelava uma  intensa emoção porém não  disfarçava  a determinação que a acompanhara por toda a vida.


Um taxi para o Albany, por favor. 




                                                        FIM