CAP. FINAL
28 DE DEZEMBRO, 1949, HIGHGATE CEMETERY
Entre monumentos vitorianos Florence Dayse Vatumbí Nash, também imóvel e bela como uma estátua, observava dois funcionários do Highgate Cemetery que pacientemente removiam camadas de pedras e terra para chegar até o caixão onde possivelmente estava enterrado o corpo de Melissa Vatumbí Nash.
Ladeada pelos dois americanos que numa noite de guerra fizeram George Wesley abandonar seu insípido jantar e sair para as ruas de Londres enfrentando o frio e os mísseis, Florence não conseguia mover um músculo. Seus olhos observavam o movimento das pás, mas sua mente revia rapidamente o caminho que percorrera para chegar até ali.
Fazia quase cinco anos após o final da guerra, desde aquela tarde terrível em que encontrara George Wesley na Champs Elisèes e quando levada por emoções muito fortes, contara-lhe o que realmente Melissa fazia. Foi tudo muito difícil e ela sentira uma enorme piedade por George vendo sua expressão de imensa tristeza ao saber que Melissa era uma prostituta.
Quando enviou Melissa até sua casa, Florence sabia que George poderia se apaixonar por ela, como quase todos os seus clientes um dia percebiam se apaixonar, mas achava que depois de ter tido com ela própria, Florence Dayse, uma experiência bastante marcante, George saberia como se relacionar com Melissa sem se deixar levar por sentimentos. George Wesley não era mais um menino.
Enganara-se. Naquela tarde em Paris, Florence percebera em seus olhos. George havia se apaixonado realmente por Melissa e mais, muito mais que havia se apaixonado por ela mesma.
Entretanto Florence em momento algum acreditou que George não soubesse o que havia acontecido com Melissa ou onde ela estivesse. Alguma coisa estranha certamente acontecera e George sabia exatamente o que, mas por uma razão qualquer, não quis revelar.
No início Florence tentou descansar algumas semanas, mas foi em vão. Sua cabeça não conseguia afastar o pensamento de Melissa e após procurar qualquer notícia, qualquer informação entre todas pessoas que conheciam e em todos os lugares possíveis em Londres, Florence decidira buscar ajuda. Iria encontrar Melissa ou o que restasse dela, de qualquer forma.
Nossas mentes e nossos corações foram forjados para suportar a dor, mas não a dúvida. Podemos tecer uma intrincada teia de raciocínios que nos leve a conviver com a tristeza, a perda, o desencontro, o desamor, a saudade ou qualquer outro destes sentimentos que passam a vida tentando nos alcançar. Mas ficamos em angústia infinita quando simplesmente não sabemos o que nos toca.
Possivelmente Melissa estaria morta por uma bomba qualquer caída numa calçada de Londres, numa loja, numa casa de chá. Não é surpreendente morrer na guerra, mesmo quando não se está armado para o combate. Mas se estivesse viva, certamente estaria precisando de ajuda e já não contava sequer com George Wesley.
Florence Dayse já percorrera todos os caminhos de Londres e até em Paris em busca de Melissa sem qualquer resultado, até que semanas antes, recebera um convite inesperado para jantar. Era um daqueles americanos espiões da guerra, a quem Florence ajudou imaginando possibilidades de uma carreira posterior, já que o tempo a estava empurrando lentamente para fora das calçadas públicas e dos leitos alheios.
Nada disto aconteceu e após a guerra ela nunca mais teve qualquer notícia dos americanos, ninguém manteve nenhum contato com ela a respeito de serviços de inteligência ou coisa semelhante. Com certeza até as mínimas informações que obtivera trabalhando com eles teriam sido irrelevantes ou falsas.
Na verdade ela servira apenas como guia até alguns figurões de Londres. por ter acesso aos seus quartos, além de servir como um bom motivo para erotizar o tempo daqueles americanos sem graça, sendo descartada imediatamente após a guerra.
Mas não se arrependia de nada. Aquilo ao menos serviu para fazer passar mais rápido uma época infernal e também para apressar o final de seu relacionamento com George Wesley, que já adquiria nítidas características de neurose.
George não se conformava com o fato dela ter sido ou continuar sendo -ele jamais teria certeza disso- uma prostituta. Seu sentimento oscilava entre o amor doentio e o ciúme descontrolado. Por vezes George parecia querer puní-la por um passado que não lhe dizia respeito. Em outras ocasiões se sentia ofendido pela liberdade de Florence, embora jamais tivesse dito uma só palavra que significasse quere-la como companheira. Talvez ele nunca viesse a descobrir, mas teria bastado uma simples palavra sua e ela teria se tornado a Srª Florence Vatumbí Wesley.
Na maioria das vezes George revelava uma espécie de amor incondicional, que entretanto carregava uma elevada dose visível de dependência. Mandar Melissa para o Albany tinha sido um erro, mas ela não sabia disso quando tomou a decisão. Já havia resolvido ajudar o serviço de inteligência norte-americano não só pensando numa atividade futura, mas também para descansar um pouco das rédeas psicológicas de George Wesley.
Melissa estaria protegida com ele, sabia disso e também lhe faria companhia. Ela não tinha qualquer intenção de magoar George e tinha certeza de que terminada a guerra, tudo poderia se resolver. Nada disso aconteceu.
Até que recebeu o envelope com o convite. Um dos agentes americanos estava em Londres e gostaria de revê-la. Florence aproveitou a oportunidade e ignorando as intenções do convite, passou todo o jantar contando-lhe a história de Melissa e seu desaparecimento, pedindo finalmente ajuda para encontra-la.
Seus amigos agentes não hesitaram em colaborar. Rastearam todos os caminhos possíveis e chegaram até ali com uma certa dificuldade, mas sem qualquer dúvida. Finalmente achavam ter encontrado Melissa, sepultada naquele cemitério inglês. Naquele túmulo poderia estar Melissa Vatumbí Nash, com apenas 22 anos se estivesse viva.
Os funcionários do cemitério finalmente terminaram de desenterrar o caixão e tirando-o do túmulo colocaram-no sobre um carrinho, levando-o até a saída do cemitério onde os esperava um sombrio furgão cinza. O cortejo seguiu direto para o necrotério.
O furgão cinza com o suposto corpo de Melissa ia à frente seguido por um carro negro e sem personalidade emprestado pelo MR 8. Um dos americanos dirigia o carro reclamando de que todos estavam na contramão. O outro sentado atrás olhava fixamente a nuca de Florence, instalada no banco do carona. Ouvia-se claramente a respiração de cada um deles.
Chegando ao necrotério os agentes americanos insistiram com Florence Dayse para que esperasse enquanto eles iriam para examinar os restos mortais e ouvir a opinião do legista. Relutante, ela obedeceu.
Sentada numa pequena sala cheirando a formol e dor, olhos fechados, parecia ouvir o ruído da tampa sendo retirada, os passos dos americanos que se aproximaram da mesa, sutis porém inequívocos encontros de ossos, as respirações ofegantes sob as máscaras para proteger do odor da morte, algumas palavras murmuradas, a tampa sendo recolocada e os mesmos passos desta vez aproximando-se dela.
Não sabia quanto tempo se passou para que tudo acontecesse, pois seu pensamento seguia os bifurcados caminhos do passado, como se pudesse encontrar neles algum desvio, algum atalho por onde pudesse entrar e chegar a um lugar diferente daquele cemitério, daquele caixão, daquele necrotério e daqueles ruídos.
Sabia que isto era impossível, mas sua mente persistia nesta busca insana, procurando na verdade escapar de qualquer forma da desordem que ali se instalara desde que batera naquela porta de mogno do Albany Court Yard, marcada com o número 308, há quase exatamente 10 anos atrás.
Florence, a ossada corresponde às características de sua filha. Ela já havia sido identificada aqui neste mesmo necrotério, apesar de toda a confusão da guerra, tantos corpos a identificar, tantos enganos.
Mas não há dúvida. É Melissa. Diversos ossos estão quebrados ou esmagados. Ela foi soterrada por um desmoronamento durante um bombardeio que atingiu a Tooley Street. Também encontramos registros disto num arquivo aqui mesmo.
Ela, bem, ela poderia até estar dormindo. Estava nua, na cama. Mas há uma coisa intrigante. Uma pequena marca de bala no crânio. Ela levou um tiro na nuca vindo de uma arma que não parece ser de guerra. Isto só pode ter acontecido instantes antes de ser soterrada.
Algo semelhante e mais intenso ainda que a explosão das bombas alemãs durante a guerra estrondou novamente na cabeça de Florence Dayse.
Tooley Street. Nua. Numa cama. George Wesley.
Uma bala?
Sua voz quase não foi escutada, mas a expressão de seu rosto era tão eloqüente quanto um dos discursos do Fürher e também tão indignada. Antes mesmo que seus amigos americanos pudessem fazer ou perguntar qualquer coisa, Florence saiu correndo pelos corredores cinzentos do necrotério alcançando rápido o portão. Ao chegar à calçada, apalpou a bolsa certificando-se de que sua pequena arma estava nela.
Ofegante, fez parar um taxi que passava no momento. Entrou quase correndo e jogou-se no banco traseiro. Sua voz trêmula revelava uma intensa emoção porém não disfarçava a determinação que a acompanhara por toda a vida.
Um taxi para o Albany, por favor.
FIM