CAP. 10
AGOSTO, 1945, AV. CHAMPS ELISÉES, PARIS
Enquanto a Marselhesa permanecia no ar junto com gritos e outros ruídos da alegria, George começou a pensar no que Florence Dayse ainda poderia significar para ele e não obteve qualquer resposta. Tentou em seguida pensar em como agir depois deste reencontro impensável. Sua mente permaneceu silenciosa. A capacidade de pensar parecia estar realmente encerrada para George Wesley, junto com a guerra.
Por sua cabeça passavam com a mesma rapidez das bombas alemãs finalmente mudas, imagens desconectadas, cenas fragmentadas onde se somavam pernas de cordeiros, seios, livros antigos, gemidos, tremores, garrafas de uísque, bilhetes, sorrisos infantis, coxas entreabertas, casacos de pele, calcinhas rendadas, americanos grandalhões, calçadas desertas, incêndios, orgasmos, portas de mogno, moedas de um penny, o rosto de Florence, o mesmo rosto em Melissa, espelhos e labirintos, labirintos e espelhos, explosões, tapetes gastos, lençóis encardidos, relógios parados, suásticas, beterrabas.
Não sei.
Florence puxou George vigorosamente pelo braço, afastando-se de multidão em direção a uma esquina menos movimentada.
Como não sabe ? Ela estava com você. Vamos encontrar um lugar para conversar.
Dobrando a esquina encontraram um hotel barato, com a fachada marcada pela guerra e com poucas pessoas na entrada. Subiram quase correndo os degraus até o primeiro andar e entraram num dos quartos que estavam abertos e vazios.
George resfolegava após tanto esforço e sentou-se à beira de uma cama de equilíbrio instável. Enquanto recuperava o fôlego, lembrou da primeira vez em que Florence fizera com que ele perdesse a respiração. Mas ouvia a voz de Florence interferindo em suas lembranças, com se viesse de muito longe, de outro lado do Canal da Mancha, ou mais ainda, do outro lado do Oceano Atlântico.
Mandei Melissa te procurar para ter certeza de que ela estaria a salvo desta guerra. Sabia que você iria protegê-la. Imaginei que ela também poderia te fazer companhia, ajudar você a superar a solidão e esquecer de mim. Ela é quase uma criança, mas muito inteligente, esperta. Poderia ser uma filha para você, te dar um pouco de paz no meio de tanta loucura, tantos desencontros. Eu também ficaria tranqüila para cuidar de minha vida, sabendo que você não deixaria que nada de mal lhe acontecesse. Onde está ela agora? Como você pode me dizer que não sabe onde está Melissa? Ela desapareceu ? Sumiu no ar ?
Sim, Melissa sumira no ar levada por uma bomba alemã, por um discurso exaltado a respeito de sua própria sexualidade e por uma bala calibre 22 de um revolver inglês, embora esta não fosse a ordem exata das coisas. George sabia que nunca teria coragem de contar a Florence o que realmente acontecera a partir do instante que recebeu aquele bilhete. Como lhe dizer que Melissa tornara-se sua amante e que ele a matara segundos antes da guerra também faze-lo?
Sim, ela sumiu. Saiu uma noite e nunca mais voltou. Fiquei muito preocupado, procurei por toda a Londres no dia seguinte, mas os alemães estavam agitadíssimos, não consegui nem uma pista sequer. Senti muito a falta de Melissa. Foi uma surpresa mesmo, quase um choque, quando ela me procurou, levando o seu bilhete. Fiquei impressionado com a semelhança dela com você e imediatamente a abriguei. Ela se tornou uma companhia agradável, quase uma filha mesmo. Ajudava-me a passar a solidão da guerra, a diminuir a tristeza de não ter mais você e a pensar com um mínimo de otimismo num futuro qualquer. Ela também me ajudou com as despesas, depois que perdi tudo com as bombas alemãs. Ela dizia que fazia pequenos trabalhos aqui e ali, em restaurantes, hotéis, albergues. Sempre conseguia umas moedas para a comida ou o querosene. Depois que ela desapareceu fiquei completamente só. No início me desesperei; você entende Florence, como uma guerra é capaz de nos fazer aceitar as mais tenebrosas possibilidades com uma certa resignação, como se o fato de ainda estarmos vivos já fosse um bem suficiente em meio à insanidade. Não sei o que houve. Não quero pensar no pior, em nenhum momento pensei no pior, mas até hoje não tenho qualquer notícia dela. Melissa me fez muita falta, não pelas moedas que ganhava com seus trabalhinhos, mas como companhia.
Visivelmente irritada, Florence levantou com tanta violência da esquálida cadeira onde estivera sentada que a atirou ao chão. Caminhou em direção a uma janela e abriu-a com força, deixando entrar um pouco do vozerio distante e os raios de um por de sol indiferente.
Merda de trabalhinhos, George. Você é um ingênuo. Melissa era uma puta, ouviu bem George ? Puta. Como eu era puta. Está me entendendo ? Puta. Com certeza meteu-se em alguma encrenca por ai nesta guerra de merda e queira Deus esteja bem.
O rosto de George Wesley era pura perplexidade, não por saber que Melissa era uma prostituta, mas por ouvir isto de sua própria mãe, como se ela estivesse dizendo que a filha era enfermeira, professora ou secretária. Puta. Certamente já era puta quando chegou ao Albany. Por isto então a sua maestria no sexo, por isto a naturalidade com que foi para as calçadas quando achou necessário. A esperta desde que chegara aproveitou suas últimas economias para descansar, até que se fora o último shilling. O espanto na expressão de George Wesley era tão sincero que fez Florence arrepender-se do que havia falado.
Oh, George perdoe-me por dizer isto desta forma. Você está certo, a guerra nos torna quase insensíveis. Jamais poderia falar assim de Melissa para você. Perdoe-me, embora seja esta a verdade. Ela certamente não queria que você soubesse. Era muito jovem quando começou com isto, como eu também era quando comecei. Deve ter tomado você como um pai e procurou esconder a realidade com vergonha. Sempre recomendei a ela que evitasse chocar as pessoas, de uma forma ou de outra. Melissa é uma boa menina. O que terá acontecido com ela, George ?
George Wesley não conseguiria responder, mesmo que tivesse tal intenção. Sentado naquela cama de um hotel barato em Paris, ele era a mais perfeita imagem da derrota. Certamente naquele mesmo momento, não havia um único dos generais alemães derrotados na guerra que se encerrava, que demonstrasse tão claramente a derrota.
George?
Florence Dayse e Melissa Vatumbí Nash.
George? Fale comigo.
A derrota nem sempre é anunciada pelo perigo das balas, bombas, incêndios, sangue, mutilações, estilhaços e explosões, até que se torne inevitável a rendição ou a morte. A derrota pode chegar envolta num sorriso de lábios entreabertos, dentes muito brancos, cabelos lisos e negros, coxas firmes, seios pequenos e rijos, voz sedutora. Quando a derrota é anunciada desta forma, batendo em sua porta, instalando-se em seguida em seu leito e em seus poros, ela pode ser a derrota suprema, aquela que não permite raciocínios, estratégias, explicações ou justificativas. A derrota assim chegada é a derrota invisível, silenciosa, definitiva. A derrota que elimina a vida fazendo desaparecer não o corpo ou a coragem, mas a própria alma.
Sem qualquer palavra George Wesley levantou, saiu do quarto, desceu as velhas escadas e sumiu entre a multidão que gritava e cantava pelas ruas de Paris.
Depois de algum tempo, Florence Dayse Vatumbí Nash levantou da mesma cama onde George estivera sentado.
Com passos lentos chegou até a frente de um espelho sem tempo e sem memórias, parou e levou as mãos aos cabelos, num gesto instintivo. Enquanto arrumava os fios negros com os dedos, Florence percebeu claramente que o tempo e a guerra haviam passado por seu corpo, seu rosto, seus olhos e seus sonhos.
Agora não havia mais as festas, não havia mais o Albany nem havia George. Não havia os americanos e a espionagem ridícula, não havia sequer Terence Burton. Pior de tudo: talvez não houvesse nem Melissa.
Merda de vida, maldita Paris, guerra idiota.