Cultura

X CAPÍTULO DA NOVA "UM TÁXI PARA O ALBANNY", POR MARCO GAVAZZA

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| 18/07/2009 às 22:01
O drama de consciência de Geoerge diante de Florence e o final da guerra
Foto: MC
 

CAP. 10


AGOSTO, 1945, AV. CHAMPS ELISÉES, PARIS


Enquanto a Marselhesa permanecia no ar junto com gritos e outros ruídos da alegria, George começou a pensar no  que Florence  Dayse ainda  poderia significar para ele e  não obteve qualquer resposta. Tentou em  seguida pensar  em como agir depois deste reencontro impensável. Sua mente permaneceu silenciosa.  A  capacidade de pensar parecia estar realmente encerrada para George Wesley, junto com a guerra.


Por sua  cabeça passavam com a mesma rapidez das bombas alemãs finalmente mudas, imagens desconectadas,  cenas fragmentadas onde se somavam  pernas de cordeiros,  seios, livros antigos, gemidos, tremores, garrafas de uísque, bilhetes,  sorrisos  infantis, coxas entreabertas, casacos de pele, calcinhas rendadas, americanos grandalhões, calçadas desertas,  incêndios, orgasmos,  portas de mogno, moedas de um penny, o  rosto de  Florence,  o mesmo rosto em Melissa, espelhos e labirintos,  labirintos e espelhos, explosões, tapetes  gastos, lençóis encardidos, relógios parados, suásticas, beterrabas. 


Não sei.


Florence puxou  George vigorosamente pelo braço,  afastando-se de  multidão  em  direção a uma esquina menos movimentada.


Como não sabe ? Ela  estava  com  você.  Vamos encontrar um lugar para  conversar.   


Dobrando  a  esquina encontraram um hotel barato,  com  a fachada marcada pela guerra e com poucas pessoas na  entrada. Subiram quase correndo os  degraus até o  primeiro  andar  e  entraram num  dos  quartos que estavam abertos e vazios.


George  resfolegava após tanto esforço e sentou-se  à beira de uma  cama de  equilíbrio instável. Enquanto recuperava o  fôlego, lembrou  da  primeira  vez em que Florence fizera com que ele perdesse a respiração. Mas ouvia a voz  de Florence interferindo em suas lembranças,  com se viesse de muito  longe, de outro lado do  Canal da Mancha, ou  mais  ainda,  do  outro lado  do Oceano Atlântico. 


Mandei  Melissa te  procurar para  ter  certeza de que ela  estaria a salvo  desta guerra. Sabia  que você iria protegê-la.  Imaginei que  ela também poderia  te  fazer companhia,  ajudar você  a superar a  solidão e  esquecer de mim.  Ela  é quase  uma  criança, mas muito inteligente, esperta. Poderia  ser uma filha para você, te dar um pouco  de  paz no meio de tanta loucura, tantos desencontros. Eu  também ficaria tranqüila para cuidar de minha vida, sabendo que você  não  deixaria que  nada de  mal  lhe acontecesse. Onde  está  ela agora?  Como você pode me  dizer  que  não sabe  onde está  Melissa? Ela desapareceu ? Sumiu no  ar ?

  

Sim,  Melissa  sumira no  ar levada por uma bomba alemã, por um discurso exaltado a respeito de sua própria sexualidade e por uma bala  calibre  22 de  um  revolver  inglês, embora esta  não fosse  a ordem exata das  coisas.  George  sabia que  nunca teria coragem de contar a  Florence o que realmente acontecera  a partir do instante    que recebeu  aquele  bilhete.  Como lhe dizer que Melissa tornara-se sua amante e que ele a matara segundos antes da guerra também faze-lo?


Sim,  ela sumiu. Saiu  uma  noite e nunca mais voltou.  Fiquei muito preocupado, procurei por toda a  Londres no dia seguinte, mas os alemães estavam agitadíssimos, não consegui  nem uma pista sequer. Senti muito  a falta de  Melissa. Foi uma surpresa mesmo, quase um choque, quando ela me procurou,  levando o seu bilhete. Fiquei impressionado com a semelhança dela com  você e imediatamente a abriguei. Ela se tornou  uma companhia agradável, quase uma filha mesmo. Ajudava-me a passar a solidão da guerra, a  diminuir a tristeza de não ter mais você e a pensar com um mínimo de otimismo num futuro qualquer. Ela também me ajudou  com  as despesas, depois que perdi  tudo com as bombas alemãs. Ela dizia que  fazia pequenos  trabalhos aqui  e  ali, em restaurantes, hotéis, albergues. Sempre  conseguia umas  moedas  para a comida ou o querosene. Depois que  ela desapareceu fiquei  completamente só. No início me desesperei; você  entende Florence,  como  uma guerra é capaz de nos fazer aceitar as mais tenebrosas possibilidades com  uma certa resignação, como se o fato de ainda estarmos vivos já fosse um  bem suficiente  em meio  à insanidade. Não sei o que  houve. Não quero  pensar no pior,  em nenhum momento  pensei no pior, mas até  hoje  não tenho qualquer notícia dela. Melissa me fez muita  falta, não pelas  moedas que ganhava com seus trabalhinhos, mas como companhia.  


Visivelmente irritada, Florence levantou com tanta violência da  esquálida cadeira  onde estivera sentada que a atirou  ao chão. Caminhou em direção a  uma janela e abriu-a com força, deixando  entrar um pouco do  vozerio distante e os raios de um  por  de  sol indiferente. 


Merda de trabalhinhos, George. Você é um ingênuo. Melissa era uma puta, ouviu bem George ? Puta. Como eu era puta. Está me entendendo ? Puta. Com certeza meteu-se em  alguma encrenca por ai nesta guerra de merda e  queira Deus esteja bem.  


O rosto de  George  Wesley era  pura perplexidade, não por saber que Melissa era uma prostituta, mas  por ouvir isto de sua própria  mãe, como se  ela estivesse dizendo que  a filha era enfermeira,  professora ou secretária. Puta. Certamente  já era  puta quando  chegou ao  Albany. Por isto então a sua maestria no  sexo, por isto a naturalidade com que foi para as calçadas quando achou necessário. A esperta desde que chegara aproveitou  suas últimas economias para descansar, até que se fora o último  shilling. O espanto na expressão de George Wesley era tão sincero  que fez Florence arrepender-se do que havia falado.

  

Oh,  George perdoe-me por dizer isto desta forma. Você está certo, a  guerra nos torna quase insensíveis. Jamais poderia falar assim de Melissa para você. Perdoe-me, embora seja esta a verdade. Ela certamente não queria que você soubesse. Era muito jovem quando começou  com isto, como eu  também era quando comecei. Deve ter tomado você como  um pai  e procurou esconder a realidade com vergonha. Sempre recomendei a  ela que evitasse chocar as pessoas, de  uma  forma ou de outra. Melissa é uma boa menina.  O que terá acontecido com ela, George ?

  

George Wesley não conseguiria responder, mesmo  que tivesse tal intenção. Sentado naquela cama de um  hotel barato em Paris, ele era a  mais perfeita imagem da derrota. Certamente naquele mesmo momento, não havia um  único  dos generais alemães derrotados na guerra que se encerrava, que demonstrasse tão claramente a derrota.

   

George?

   

Florence Dayse e Melissa Vatumbí Nash. 

   

George? Fale comigo.

   

A derrota nem sempre é anunciada  pelo perigo das balas, bombas, incêndios, sangue, mutilações, estilhaços e explosões, até que se torne inevitável a rendição ou  a  morte. A derrota  pode chegar envolta num sorriso de  lábios  entreabertos, dentes muito brancos, cabelos lisos e negros, coxas firmes, seios pequenos e rijos,  voz  sedutora. Quando a derrota é anunciada desta  forma,  batendo em  sua  porta, instalando-se em seguida em seu  leito e em seus poros, ela pode ser a derrota suprema, aquela que não permite raciocínios, estratégias, explicações ou justificativas. A derrota assim chegada é a derrota invisível, silenciosa, definitiva. A derrota que elimina a vida fazendo desaparecer não o corpo  ou a coragem,  mas a própria alma.


Sem qualquer palavra George  Wesley levantou, saiu do  quarto, desceu  as velhas escadas e sumiu entre a multidão que gritava e cantava pelas ruas  de Paris.


Depois de algum tempo, Florence Dayse Vatumbí Nash levantou da mesma cama onde George estivera sentado.


Com passos lentos chegou até a frente de um espelho sem tempo e  sem memórias, parou e levou as mãos aos cabelos, num gesto  instintivo. Enquanto arrumava  os fios negros  com os dedos, Florence percebeu  claramente que o tempo  e a guerra haviam passado por seu corpo, seu rosto, seus olhos e  seus sonhos.


Agora não havia mais as festas, não havia mais o Albany nem havia  George. Não havia os americanos  e a espionagem ridícula, não  havia  sequer Terence Burton.  Pior de tudo: talvez não houvesse nem Melissa.


Merda de vida, maldita Paris, guerra  idiota.