AGOSTO, 1945, AV. CHAMPS ELISÉES, PARIS
Florence Dayse Vatumbí Nash mal podia acreditar: a guerra estava encerrada. Por entre tanques blindados, bandeiras americanas, La Marseillèse a todo volume, milhares de garrafas de vinho e póire, recrutas ianques se enroscando em todas as francesas, o General De Gaulle entrava em Paris afastando os alemães dementes e todas as sombras que pairavam sobre a vida há tanto tempo.
Florence Dayse, em meio a toda aquela explosão de alegria, cercada de ruídos e movimentos por todos os lados, conseguia não pensar em nada daquilo. Ficava imaginando como certas coisas na vida parecem exercer sua autonomia até o limite da nossa resistência. Florence pensava em situações nas quais lutamos com todas as nossas forças para conseguirmos um objetivo razoavelmente simples, algo às vezes banal, como um namorado decente, um lugar agradável para alugar ou um tempero especial para uma receita e entretanto todas as forças do universo parecem unir-se para impedir. Como a tentativa de conciliar sua missão durante aquela guerra que acabava e a possibilidade de uma vida normal ao lado de George Wesley.
Agora, acabada a guerra, talvez sequer existisse mais George Wesley. Menos ainda a possibilidade de retomar aquele antigo relacionamento. Mesmo depois que ela enviara Melissa para George como uma forma de protegê-la e ao mesmo tempo de evitar que ele se esquecesse dela. Ou talvez, por isso mesmo.
Viver depois daquela noite terrível em que terminara por levar Terence Burton para a cama havia sido uma experiência quase tão insuportável quanto a guerra. Terence não sabia que naquele momento Florence Dayse Vatumbí Nash pensava em George Wesley, com a certeza de nunca mais iria vê-lo depois daquela noite.
Terence, como todo homem que passara pela experiência de, entre infinitos espaços físicos no planeta para posicionar o corpo, encontrar-se um dia entre as pernas de Florence, apaixonara-se por ela. Ele tentara fazer com que ela o amasse, mas este tipo de sentimento não faz parte dos manuais de procedimentos da inteligência militar; eles pertencem a um universo onde a inteligência, seja ela de qualquer espécie, não possui qualquer autoridade.
Florence não sentia nada por Terence Burton.
Ao perceber que Florence jamais o amaria, Terence passou a exigir dela um comportamento apaixonado como se isto fizesse parte de suas tarefas como espiã. Ameaçava puní-la, denunciá-la e até matá-la se fosse preciso, em nome do amor e da guerra. Apenas quando uma missão de espionagem o enviava para lugares diferentes, ela podia descansar a mente e o corpo, pois que Terence revelara-se também insaciável, fazendo sexo com ela a qualquer hora e lugar, sem qualquer cuidado. A cada vez que Florence não gozava, o mundo explodia em sua cabeça por não ter sentido prazer com ele e a cada vez que ela gozava, o mundo explodia em sua cabeça por ele achar que ela fingia.
Goze, sua vagabunda, vamos goze logo. Goze e diga que me ama, quero que você goze dizendo que me ama. Vamos, diga que me ama, me ama, me amaaahhhhhhh.
Florence neste instante ficava como que suspensa no ar, tendo a sensação de ter pulado de um avião sem saber ao certo se havia colocado um pára-quedas.
Goze, sua vagabunda, vamos goze logo. Eu sou o seu homem, você sabe disso. Goze e diga que me ama. Não gozou, hein vagabunda.
Claro, Florence não podia.
Deve ter trepado com uma divisão inteira de alemães. Se eu não estivesse tão cansado iria agora mesmo conseguir provas disto e enviar você para a cadeia, puta velha.
Por isso, quando um dia recebeu uma mensagem do comando central informando que Terence Burton havia sido morto em missão e que ela deveria interromper todas as suas ações e afastar-se de sua atividade, Florence Dayse teve a sensação de que a sua própria guerra havia acabado, embora as ruas de Paris permanecessem repletas de bandeiras vermelhas com a maldita suástica e de alemães imbecis pisando as calçadas imortais da cidade como se pisassem corpos denegridos, como faziam nos campos de concentração.
Agora que todas as suásticas haviam sido arrancadas realmente de Paris e que Terence Burton fora também arrancado de cima dela e da vida, tudo parecia muito vago, tudo sem qualquer referência, tudo muito distante, como se aquela guerra sempre houvesse existido, desde que ela nascera num dia de verão em Capetown.
A mãe bêbada e aristocrata, a prostituição requintada, um taxi para o Albany, George Wesley, a idiotia alemã, a inteligência americana, a resistência francesa. Tudo parecia carecer de sentido e de tempo. Como se tudo tivesse acontecido de uma só vez, ao mesmo tempo, sem que cada fato e cada coisa possuíssem um momento específico.
Como se George Wesley pudesse ser um oficial nazista, sua mãe uma prostituta de luxo, os agentes americanos apenas livreiros tímidos e impotentes e ela própria, um taxi indo de um lado para o outro sem nunca chegar ou partir realmente. Iria a Londres, por certo, procurar Melissa. Ela certamente estaria viva e teria notícias de George Wesley.
No meio da multidão que se comprimia em torno da Place Etoìlle, Florence Dayse deixava-se levar por seus pensamentos.
Florence.
Ela escutara perfeitamente seu nome, por entre todos os sons que povoavam o ar de Paris naquela tarde de agosto. Quem, por todos os deuses, poderia tê-la encontrado ali ? Olhou em volta e não viu ninguém conhecido.
Florence.
Escutou novamente. Tinha certeza de que alguém chamava por ela. Mas quem ? Olhou em volta por sobre cabeças e ombros em busca de alguma improvável face conhecida, até que seus olhos pousaram em quem jamais poderia estar ali, naquele momento. George Wesley, em carne e osso. Muito magro, semblante taciturno, levemente encurvado, olhar quase embaçado, mas certamente, George Wesley.
Florence Dayse sentiu sons violentos explodindo em sua cabeça e por segundos chegou a pensar que a guerra havia recomeçado, mas os soldados americanos continuavam beijando todas as mulheres que encontravam pela frente, ao som da Marselhesa. Não conseguiu mover um músculo enquanto seus olhos incrédulos acompanhavam os passos desengonçados de George Wesley que lentamente abria espaço entre a multidão, caminhando em sua direção.
Meu Deus.
Finalmente George Wesley parou frente a frente com Florence Dayse Vatumbí Nash, cinco anos depois de ter aberto aquela maldita porta de mogno do apartamento 308 do Albany, numa tarde de 1º de janeiro de um tempo que jamais passara por ele, tinha certeza agora.
Você está viva.
Ela neste instante não tinha muita certeza disso, mas suspeitou estar viva sim, pois em seguida George Wesley abraçou-a e beijou-a fortemente, como se ele também fosse um soldado ianque e ela uma jovem francesa recém libertada. Como nada disto era verdade, após o beijo inesperado cada qual começou a voltar lentamente ao mundo real. George Wesley atravessara o Canal da Mancha para ficar longe do corpo de Melissa, que ele havia assassinado. Melissa, a filha de Florence, a mesma Florence que havia batido à sua porta de mogno e depois desaparecera com uns americanos esquisitos.
Florence estava ali porque não havia outro lugar onde pudesse estar. Quando Terence Burton fora para Paris apoiar a resistência, levou-a junto, como quem leva munição ou provisões. Depois que ele morrera, Florence ficou em Paris, pois sabia que em pouco tempo os aliados poriam um fim naquela guerra maldita. Ela decidiu esperar por isto antes de começar a buscar Melissa, sua filha, que ela um dia enviara para George Wesley, como forma de protege-la e como forma também de não deixá-lo completamente só. Nunca soube se isto tinha sido uma boa idéia e somente encontrando Melissa poderia descobrir. Este era seu plano até que no meio daquela multidão ela fora encontrada por George Wesley, de quem ela não tinha sequer certeza de estar vivo.
Meu Deus.
Agora ela estava ali, ainda segurando seus ombros, com uma expressão indefinida.
Onde está Melissa ?
George Wesley sabia que esta pergunta era inevitável, mas não imaginou que ela viesse tão imediatamente.
Não sei.
Respondeu também imediatamente, sem ter o comando das palavras, como se o seu instinto de preservação adquirisse voz e autonomia repentinamente. Concordou com a própria resposta, sempre imediatamente. Não poderia dizer a Florence Dayse que havia interrompido as queixas de Melissa e seus 21 anos de vida com um tiro na nuca. Não, nunca. Teria que pensar muito para saber o que dizer e o que fazer dali por diante.
Mas, George Wesley não poderia imaginar que a partir daquele instante, sua capacidade de pensar estava definitivamente encerrada.