Cultura

IX CAPÍTULO DA NOVELA "UM TÁXI PARA O ALBANY", POR MARCO GAVAZZA

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| 11/07/2009 às 23:43
Paris comemora a libertação e George perde sua capacidade de pensar
Foto: Arquivo
 

CAP. 9

  

AGOSTO, 1945, AV. CHAMPS ELISÉES, PARIS

   

Florence Dayse Vatumbí Nash mal podia acreditar: a guerra estava encerrada. Por entre tanques blindados, bandeiras americanas, La Marseillèse a todo volume, milhares de garrafas de vinho e póire, recrutas ianques se enroscando em todas as francesas, o General De Gaulle entrava em Paris  afastando  os alemães dementes  e todas  as  sombras que pairavam  sobre a  vida há tanto tempo.

   

Florence Dayse, em meio a toda aquela explosão de alegria, cercada de ruídos e movimentos por todos os lados, conseguia não pensar em nada daquilo. Ficava imaginando como certas coisas na vida parecem exercer sua autonomia até o limite da nossa resistência. Florence pensava em situações nas quais lutamos com todas as nossas forças para conseguirmos um objetivo razoavelmente simples, algo às vezes banal, como um namorado decente, um lugar agradável para alugar ou um tempero especial para uma receita e entretanto todas as forças do universo parecem unir-se para impedir.  Como  a tentativa de conciliar sua missão durante aquela guerra  que acabava e a possibilidade de uma vida  normal  ao lado  de  George Wesley. 

   

Agora, acabada a guerra, talvez sequer existisse mais George Wesley. Menos ainda  a possibilidade de retomar aquele antigo relacionamento. Mesmo depois  que ela  enviara Melissa para George  como uma  forma de protegê-la e ao mesmo tempo de evitar  que ele se esquecesse dela. Ou talvez,  por isso mesmo.

   

Viver depois daquela noite terrível  em  que terminara por levar Terence Burton para a cama havia sido uma  experiência quase tão insuportável quanto a guerra. Terence não sabia  que  naquele momento  Florence Dayse Vatumbí Nash pensava em  George Wesley,  com  a certeza de nunca mais iria vê-lo depois daquela noite.


Terence, como todo homem que passara pela experiência de, entre infinitos espaços  físicos no planeta para posicionar o corpo, encontrar-se um dia entre as pernas  de Florence, apaixonara-se por ela. Ele tentara  fazer com que ela o amasse, mas este tipo de sentimento não faz parte  dos manuais de  procedimentos da inteligência  militar; eles pertencem a um universo onde a inteligência,  seja ela de qualquer espécie, não possui qualquer autoridade.

    

Florence não sentia nada por Terence Burton.

    

Ao perceber que Florence jamais o amaria,  Terence passou  a exigir  dela um comportamento apaixonado como  se isto fizesse parte de suas tarefas  como  espiã. Ameaçava puní-la, denunciá-la e  até matá-la se fosse preciso, em nome  do  amor e da guerra. Apenas quando uma missão de espionagem o enviava para lugares diferentes, ela podia descansar  a mente e o  corpo, pois que Terence revelara-se também insaciável, fazendo sexo com ela a qualquer hora e lugar,  sem qualquer cuidado. A cada vez que Florence não gozava, o mundo explodia em sua cabeça por  não ter sentido prazer com  ele  e a cada vez que ela gozava,  o mundo explodia em  sua cabeça por ele achar que ela fingia.


Goze, sua vagabunda, vamos goze logo. Goze e  diga que  me ama, quero que você goze dizendo que me ama. Vamos, diga que  me  ama, me ama, me amaaahhhhhhh.

     

Florence  neste instante ficava como que suspensa  no ar, tendo a  sensação de ter pulado de um avião sem saber ao certo se havia colocado um pára-quedas.

       

Goze, sua vagabunda, vamos goze logo. Eu sou o  seu  homem, você sabe disso. Goze e  diga que  me ama. Não  gozou, hein vagabunda.


Claro, Florence não podia.


Deve ter trepado com uma divisão inteira de alemães. Se eu não estivesse tão cansado iria agora mesmo conseguir provas disto e enviar você  para a cadeia, puta velha.

      

Por isso, quando um  dia recebeu uma mensagem do comando  central informando que Terence Burton havia  sido  morto em missão e que ela deveria interromper todas as  suas ações e  afastar-se  de sua atividade, Florence  Dayse teve a  sensação de que  a sua própria guerra havia acabado, embora as ruas de Paris permanecessem repletas  de  bandeiras vermelhas com a  maldita  suástica e de alemães imbecis pisando  as calçadas imortais  da cidade como se  pisassem corpos denegridos, como faziam nos campos de concentração.


Agora que todas as suásticas haviam sido arrancadas realmente de Paris e que  Terence Burton  fora também arrancado de cima dela e da vida, tudo parecia muito vago, tudo sem qualquer referência, tudo  muito distante, como se  aquela guerra sempre houvesse existido, desde que ela nascera num dia de verão em Capetown.


A mãe bêbada e aristocrata, a prostituição requintada, um taxi para  o Albany, George  Wesley, a idiotia  alemã, a inteligência americana, a resistência francesa. Tudo parecia carecer de sentido e de  tempo. Como  se  tudo  tivesse acontecido de uma só vez, ao mesmo tempo, sem que cada fato e  cada coisa  possuíssem um  momento  específico.

    

Como se George  Wesley  pudesse  ser um oficial nazista, sua  mãe uma prostituta de luxo, os agentes  americanos apenas livreiros tímidos e impotentes e  ela própria, um taxi indo  de um  lado para o outro  sem  nunca chegar ou partir realmente.  Iria a Londres, por certo,  procurar Melissa. Ela  certamente estaria viva e teria notícias de  George Wesley.


No meio  da multidão que se comprimia  em  torno  da Place Etoìlle, Florence Dayse deixava-se levar  por seus  pensamentos. 

   

Florence.


Ela escutara perfeitamente seu nome,  por entre todos os sons que povoavam  o ar de Paris naquela tarde de  agosto. Quem, por todos os deuses,  poderia tê-la encontrado  ali ?  Olhou  em  volta e não viu ninguém conhecido.


Florence.


Escutou  novamente. Tinha certeza  de que alguém chamava por  ela. Mas quem  ?  Olhou em volta por  sobre cabeças e  ombros  em  busca de  alguma improvável face conhecida, até que seus olhos pousaram em  quem  jamais poderia  estar  ali, naquele momento. George Wesley, em carne e osso.  Muito magro,  semblante taciturno, levemente encurvado,  olhar quase embaçado, mas certamente, George Wesley.

   

Florence  Dayse sentiu sons violentos explodindo em sua cabeça  e  por segundos  chegou a  pensar que a guerra havia  recomeçado,  mas os  soldados americanos  continuavam beijando todas as  mulheres que  encontravam pela frente, ao som  da Marselhesa.  Não conseguiu mover  um  músculo  enquanto  seus  olhos  incrédulos acompanhavam  os passos desengonçados de  George  Wesley que lentamente  abria espaço entre a  multidão, caminhando em sua  direção.


Meu Deus.  


Finalmente George Wesley parou frente a frente com Florence  Dayse Vatumbí Nash, cinco anos depois  de ter  aberto  aquela maldita porta de mogno do apartamento 308 do Albany, numa tarde  de 1º de janeiro de um tempo que jamais passara por  ele, tinha certeza agora.


Você está viva. 


Ela neste instante não tinha muita certeza  disso, mas suspeitou estar viva  sim, pois em seguida George Wesley abraçou-a e beijou-a fortemente, como se  ele também  fosse um soldado ianque e  ela   uma jovem  francesa recém libertada. Como nada disto era verdade, após o beijo  inesperado cada qual começou a  voltar lentamente ao mundo real. George Wesley atravessara o Canal da Mancha para ficar longe do  corpo  de Melissa,  que ele havia  assassinado. Melissa, a filha  de Florence, a mesma  Florence que havia  batido à sua porta de mogno e  depois  desaparecera com uns americanos  esquisitos.

    

Florence  estava ali porque  não havia outro lugar onde  pudesse estar. Quando Terence Burton  fora para Paris apoiar a resistência,  levou-a junto, como quem  leva munição ou provisões. Depois que  ele  morrera, Florence ficou em Paris,  pois sabia  que em pouco tempo os aliados poriam um  fim naquela guerra maldita.  Ela decidiu esperar por isto  antes  de  começar a buscar Melissa,  sua filha, que  ela  um dia  enviara para  George Wesley,  como forma de  protege-la e como forma  também de não  deixá-lo completamente só. Nunca  soube se  isto tinha sido  uma  boa idéia e somente  encontrando  Melissa poderia descobrir. Este era seu plano até que no  meio daquela multidão ela fora  encontrada  por  George Wesley,  de  quem ela não tinha sequer certeza de estar vivo.


Meu Deus.


Agora ela estava ali,  ainda segurando  seus ombros, com  uma expressão indefinida.


Onde está Melissa  ? 

    

George Wesley sabia que esta pergunta era inevitável, mas  não imaginou que ela  viesse tão  imediatamente.


Não sei. 


Respondeu  também imediatamente,  sem  ter  o comando das palavras,  como  se  o seu instinto de preservação adquirisse voz  e autonomia repentinamente. Concordou com  a própria resposta, sempre imediatamente.  Não poderia dizer a Florence Dayse que havia interrompido as  queixas de  Melissa e  seus  21  anos  de vida com um tiro na  nuca. Não, nunca. Teria que pensar muito para saber  o que dizer e o que fazer  dali por diante.

    

Mas,  George Wesley não poderia imaginar que  a partir daquele  instante, sua  capacidade de pensar estava definitivamente encerrada.