Cultura

CAPÍTULO VIII DA NOVELA "UM TÁXI PARA O ALBANY", POR MARCO GAVAZZA

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| 04/07/2009 às 23:45
O que aconteceu com George depois de ler o ensaio La Otra Muerte? Veja neste capítulo.
Foto: MG

CAP. 8
JULHO, 1945, TOOLEY STREET, SOUTHWARK, LONDRES


George levantou-se da cadeira onde estivera instalado durante todo o discurso de Melissa e encaminhou-se até ela. Tomando-a pelos ombros fez com que girasse até ficar de frente para ele. Ela permaneceu imóvel, com o  olhar distante e irritado.  Ele  terminou de tirar a blusa que ela levantara acima da cabeça, depois desceu o longo zíper lateral da saia muito justa, fazendo com que deslizasse pelas coxas, depois pelas pernas, até cair aos seus pés. Ele também fez a mesma coisa, ajoelhando-se diante da jovem enquanto descia lentamente sua calcinha. 


George, pare com isso. George, eu não quis brigar com você. Não faça isso sem vontade George, eu estava irritada apenas. George, você não, eu vou me aborrecer George, pare com isso, não precisa me procurar sem vontade, George, chega. Não faça isso.


George nunca conseguiu situar muito bem a fronteira entre o sexo e o amor, o que é sempre muito difícil.  Sempre achou que o sexo para ser bom necessitava apenas simpatia e alegria. Mas, sentia que, com pessoas que se ama, mesmo quando a alegria não estava por perto, o sexo deixava sempre uma sensação agradável de comunhão do tempo, como se bastasse um único segundo para os dois, um único minuto, uma única hora. Não tinha certeza, até porque nunca amara ninguém, incluindo-se aí Florence Dayse, isto sim com certeza, mas algumas vezes experimentara esta sensação única.


George  não, oh não George, não, não faça, faça, faça mais meu amor, que saudade, vá, vá, vá, faça, George, faça, venha George, venha, deite, deite, deixe eu ir por cima, George, oh meu Deus. Ai, ai, ai, ai, meu Deus. Eu sou  sua George, só  sua,  sou  a  puta  só sua George, toda sua. Ohhhh,  George,  me deixe  louca, eu quero gozar  George, quero gozar de verdade.


Todos nós temos o nosso tempo, o tempo próprio, individual, que é diferente do tempo comum e é também  diferente do tempo de todas as outras pessoas. Cada qual tem o tempo  próprio  da sua madrugada, do seu amanhecer, do seu ocaso e da sua noite. O minuto que deflagra a manhã é diferente para cada pessoa. A sua hora de  almoçar é só sua. O segundo quase inexistente que permite o crepúsculo é individual, único, indivisível.

  

Mas, quando se está fazendo sexo com alguém especial, parece haver um só tempo para os dois. Como o ar, que também parece ser comum e não mais individual, um ar que necessitasse ser dividido entre os  dois, até o último gemido. Como o movimento dos corpos, que parece ser comandado por um único instinto, algo  que não é só do seu cérebro  ou só do seu  tempo. Como  o suor que se  confunde  e se  soma  entre os dois  corpos, não pertencendo mais  a nenhum  dos  dois e sim aos dois; nada mais é único, nada mais é individual e tem-se a  sensação  de que nunca mais vai se voltar a ser um  só, que nunca mais se terá apenas duas  pernas, dois braços e um único  sexo.


Depois do orgasmo, o corpo e  o  suor  voltam a ser só seus, mas o tempo permanece comum aos dois por um pouco ainda, para só lentamente começar a se dividir,  se afastar e a pertencer isoladamente e novamente a cada um.  Dividir o corpo, o ar e o tempo deve significar amar, pois quando este sentimento não existe, o sexo pode ser bom, mas o seu corpo é só  seu, o seu prazer vem no seu  ritmo, o ar é diferente daquele da outra pessoa, o seu tempo continua sendo só seu. Esta sensação agradava e  intrigava George. Se o tempo era capaz  de amoldar-se ao momento e às sensações de cada um, aquela noite interminável para Melissa pelas calçadas  do  quase pós-guerra em Londres certamente não deveria ter sido a  mesma para ele, já que não  amava Melissa.


George penetrava mecanicamente o corpo de Melissa enquanto seu pensamento percorria os estranhos caminhos do raciocínio em busca de um sentido para todas estas considerações a respeito do tempo, da matéria e do ar como elementos catalisadores do amor e do sexo, o que era certamente uma difícil equação. Ainda mais agora, quando o ar recendia a pólvora e a fumaça. Seu pensamento voltou à cama ao escutar os gemidos mais intensos e as palavras entrecortadas de Melissa.


Ai George, eu vou gozar, eu vou gozar, eu vou, eu vou George. Vai ser forte George, vai ser forte, não pare, não pare, mais, mais, mais, mais, está quase chegando, quase chegando, ai, ai, aiiiii. George, eu estou meu amor, eu estou gozando.


Era difícil saber quando Melissa estava realmente satisfeita e quando estava apenas proporcionando ao parceiro a sensação de poder e de competência. É parte de quem vive o amor das calçadas e esquinas da vida, fantasiar o êxtase, não só para agradar o parceiro fugaz, mas também para que, de alguma forma, exista o êxtase, ainda que este não passe de uma interpretação, da qual ela também necessita.


Muitas vezes um ator, após encenar a  mesma peça incontáveis vezes, termina por assumir a personalidade do  personagem, num jogo cruel de  identidades, levado ao extremo quando  o  personagem também começa a  parecer confuso, assumindo a  personalidade  do  ator. O  amor das calçada também  possui um  pouco destas veredas que se bifurcam. Por mais profissional que seja a relação sexual, ela é o último refúgio da intimidade e isto jamais se perde totalmente.

   

Enquanto Melissa estremecia sobre ele, George olhava atentamente seu rosto, cujos traços ainda de menina se perdiam entre as contrações do prazer ou da fantasia, ou ainda de ambos. Ela era bonita, muito bonita. Morena mais clara que Florence Dayse, olhos também mais claros que os dela e cabelos castanhos muito claros, quase loiros. O pai deveria ter sido alguém tipicamente inglês, para tentar subjugar a genética exuberante de Florence e deixar marcas diferentes das dela, num ser criado pelos dois. George ainda sentia raiva quando imaginava Florence Dayse  fazendo sexo com qualquer pessoa que não ele. Seus pensamentos masoquistas permitiam visualizar a cena e isto o deixava muito irritado, muito mesmo. Jamais soubera com quantos homens Florence estivera enquanto viveram aquela situação esquisita, meio amantes, meio amigos, meio casal, às vezes estranhos.


Venha George, venha comigo, venha comigo, ainda estou gozando, venha também meu amor, oh George, como eu te amo, venha minha vida, venha comigo,  goze junto comigo George,  goze George. 


Melissa finalmente deixou o corpo cair após o seu solitário orgasmo e tirando George de dentro dela, deitou-se pesadamente, virando-se de costas para ele. Sua respiração acelerada fazia a cintura subir e descer lentamente, enquanto deixava escapar mais alguns gemidos. George olhou longamente o corpo jovem ao lado do seu, descendo dos cabelos até os pés, admirando cada curva, cada reentrância, cada poro e cada pêlo. Melissa era uma mulher linda. Poderia sim ser sua  filha. Esta idéia geralmente deixava George em pânico.


Olhe aqui senhor George Wesley, não quero que você faça isso nunca mais, ouviu bem ? Eu não sou nenhum objeto para você me usar quando você bem entende, fique sabendo. O que eu faço nas ruas é para sobrevivermos enquanto durar esta guerra. Não nasci puta, George Wesley, não sou e não serei sempre puta. Não me trate como puta nunca mais George. Esta me escutando, estou cansada de lhe dizer isto.


Por muito tempo, tudo que ela tentara foi fazer George Wesley  entender que ela  o amava. Parecia simples para ela que  isto  fosse  visível, mas as  tais forças do universo certamente não deixaram aquele inglês renitente perceber. O pensamento de George continuava a se  afastar e continuou distante dela, embora ele a escutasse ao longe,  como o ruído das bombas alemãs.


George Wesley, me escute bem; George Wesley. Não me basta atravessar a noite atrás de umas moedas e ainda tenho  que chegar  em  casa e agüentar você debaixo de mim, sem conseguir nem gozar. Chega George Wesley, chega. Com guerra ou sem  guerra, esta foi  a  última vez que o senhor me teve.


George virou-se lentamente em direção ao criado-mudo. Ficou durante  algum tempo olhando para  aquele móvel já desgastado e que não combinava  com mais nada naquele quarto tão feio quanto a própria guerra. Lentamente seus  pensamentos foram retornando à Tooley Street, ao apartamento,  ao corpo e à voz  de Melissa.

   

Moveu também lentamente o braço em  direção ao criado-mudo, sobre o qual  repousava  uma edição  de  um ensaio chamado La Otra Muerte, de um jovem escritor argentino chamado Jorge Luís Borges, cujas histórias viviam repletas de espelhos e labirintos. Por alguns segundos imaginou que  a  sua vida  de alguma forma se assemelhava ora a um  labirinto,  ora a um  espelho. Um ampliando e  confundindo constantemente o outro. Florence fora o labirinto  e Melissa o seu espelho. Ou teria sido o contrário ?  Não importava muito, já que os efeitos eram rigorosamente iguais: uma seqüência interminável e  crescente  de dúvidas, questões, ciúmes, orgasmos, insônia, comida mal feita, sexo descontrolado, calçadas, explosões, desprezo, carências, labaredas, whisky vagabundo, ansiedades e incertezas pairando como espadas sobre sua cabeça.

   

Da gaveta do criado-mudo George Wesley tirou um pequeno revolver calibre 22.

   

Seu olhar moveu-se algumas vezes entre  a arma e o corpo de  Melissa,  pensando que  ironicamente ambos  estavam em suas mãos. Naquele momento ele era  o  dono e senhor absoluto  daquele corpo jovem, quente e sedutor, daquele orgasmo encenado, daquele metal  frio, milenar e destruidor, daquela vida repetida.

   

Com um único tiro na nuca, George encerrou a longa e derradeira declaração feita por Melissa Vatumbí Nash. 

  

Quase no mesmo instante um violento estrondo sacudiu a Tooley Street e o prédio, atingidos por uma bomba alemã. Parte do teto caiu sobre eles, atingindo em cheio o corpo já sem vida de Melissa e esmagando-o contra a cama. O lado onde George se encontrava, pálido e trêmulo, com o revolver na mão, permaneceu intacto, como se nada houvesse ocorrido, apenas coberto por uma chuva de poeira e areia.


Um leve sorriso lentamente surgiu no rosto de George, como se o tempo novamente voltasse a ser só seu.