CAP. 8
JULHO, 1945, TOOLEY STREET, SOUTHWARK, LONDRES
George levantou-se da cadeira onde estivera instalado durante todo o discurso de Melissa e encaminhou-se até ela. Tomando-a pelos ombros fez com que girasse até ficar de frente para ele. Ela permaneceu imóvel, com o olhar distante e irritado. Ele terminou de tirar a blusa que ela levantara acima da cabeça, depois desceu o longo zíper lateral da saia muito justa, fazendo com que deslizasse pelas coxas, depois pelas pernas, até cair aos seus pés. Ele também fez a mesma coisa, ajoelhando-se diante da jovem enquanto descia lentamente sua calcinha.
George, pare com isso. George, eu não quis brigar com você. Não faça isso sem vontade George, eu estava irritada apenas. George, você não, eu vou me aborrecer George, pare com isso, não precisa me procurar sem vontade, George, chega. Não faça isso.
George nunca conseguiu situar muito bem a fronteira entre o sexo e o amor, o que é sempre muito difícil. Sempre achou que o sexo para ser bom necessitava apenas simpatia e alegria. Mas, sentia que, com pessoas que se ama, mesmo quando a alegria não estava por perto, o sexo deixava sempre uma sensação agradável de comunhão do tempo, como se bastasse um único segundo para os dois, um único minuto, uma única hora. Não tinha certeza, até porque nunca amara ninguém, incluindo-se aí Florence Dayse, isto sim com certeza, mas algumas vezes experimentara esta sensação única.
George não, oh não George, não, não faça, faça, faça mais meu amor, que saudade, vá, vá, vá, faça, George, faça, venha George, venha, deite, deite, deixe eu ir por cima, George, oh meu Deus. Ai, ai, ai, ai, meu Deus. Eu sou sua George, só sua, sou a puta só sua George, toda sua. Ohhhh, George, me deixe louca, eu quero gozar George, quero gozar de verdade.
Todos nós temos o nosso tempo, o tempo próprio, individual, que é diferente do tempo comum e é também diferente do tempo de todas as outras pessoas. Cada qual tem o tempo próprio da sua madrugada, do seu amanhecer, do seu ocaso e da sua noite. O minuto que deflagra a manhã é diferente para cada pessoa. A sua hora de almoçar é só sua. O segundo quase inexistente que permite o crepúsculo é individual, único, indivisível.
Mas, quando se está fazendo sexo com alguém especial, parece haver um só tempo para os dois. Como o ar, que também parece ser comum e não mais individual, um ar que necessitasse ser dividido entre os dois, até o último gemido. Como o movimento dos corpos, que parece ser comandado por um único instinto, algo que não é só do seu cérebro ou só do seu tempo. Como o suor que se confunde e se soma entre os dois corpos, não pertencendo mais a nenhum dos dois e sim aos dois; nada mais é único, nada mais é individual e tem-se a sensação de que nunca mais vai se voltar a ser um só, que nunca mais se terá apenas duas pernas, dois braços e um único sexo.
Depois do orgasmo, o corpo e o suor voltam a ser só seus, mas o tempo permanece comum aos dois por um pouco ainda, para só lentamente começar a se dividir, se afastar e a pertencer isoladamente e novamente a cada um. Dividir o corpo, o ar e o tempo deve significar amar, pois quando este sentimento não existe, o sexo pode ser bom, mas o seu corpo é só seu, o seu prazer vem no seu ritmo, o ar é diferente daquele da outra pessoa, o seu tempo continua sendo só seu. Esta sensação agradava e intrigava George. Se o tempo era capaz de amoldar-se ao momento e às sensações de cada um, aquela noite interminável para Melissa pelas calçadas do quase pós-guerra em Londres certamente não deveria ter sido a mesma para ele, já que não amava Melissa.
George penetrava mecanicamente o corpo de Melissa enquanto seu pensamento percorria os estranhos caminhos do raciocínio em busca de um sentido para todas estas considerações a respeito do tempo, da matéria e do ar como elementos catalisadores do amor e do sexo, o que era certamente uma difícil equação. Ainda mais agora, quando o ar recendia a pólvora e a fumaça. Seu pensamento voltou à cama ao escutar os gemidos mais intensos e as palavras entrecortadas de Melissa.
Ai George, eu vou gozar, eu vou gozar, eu vou, eu vou George. Vai ser forte George, vai ser forte, não pare, não pare, mais, mais, mais, mais, está quase chegando, quase chegando, ai, ai, aiiiii. George, eu estou meu amor, eu estou gozando.
Era difícil saber quando Melissa estava realmente satisfeita e quando estava apenas proporcionando ao parceiro a sensação de poder e de competência. É parte de quem vive o amor das calçadas e esquinas da vida, fantasiar o êxtase, não só para agradar o parceiro fugaz, mas também para que, de alguma forma, exista o êxtase, ainda que este não passe de uma interpretação, da qual ela também necessita.
Muitas vezes um ator, após encenar a mesma peça incontáveis vezes, termina por assumir a personalidade do personagem, num jogo cruel de identidades, levado ao extremo quando o personagem também começa a parecer confuso, assumindo a personalidade do ator. O amor das calçada também possui um pouco destas veredas que se bifurcam. Por mais profissional que seja a relação sexual, ela é o último refúgio da intimidade e isto jamais se perde totalmente.
Enquanto Melissa estremecia sobre ele, George olhava atentamente seu rosto, cujos traços ainda de menina se perdiam entre as contrações do prazer ou da fantasia, ou ainda de ambos. Ela era bonita, muito bonita. Morena mais clara que Florence Dayse, olhos também mais claros que os dela e cabelos castanhos muito claros, quase loiros. O pai deveria ter sido alguém tipicamente inglês, para tentar subjugar a genética exuberante de Florence e deixar marcas diferentes das dela, num ser criado pelos dois. George ainda sentia raiva quando imaginava Florence Dayse fazendo sexo com qualquer pessoa que não ele. Seus pensamentos masoquistas permitiam visualizar a cena e isto o deixava muito irritado, muito mesmo. Jamais soubera com quantos homens Florence estivera enquanto viveram aquela situação esquisita, meio amantes, meio amigos, meio casal, às vezes estranhos.
Venha George, venha comigo, venha comigo, ainda estou gozando, venha também meu amor, oh George, como eu te amo, venha minha vida, venha comigo, goze junto comigo George, goze George.
Melissa finalmente deixou o corpo cair após o seu solitário orgasmo e tirando George de dentro dela, deitou-se pesadamente, virando-se de costas para ele. Sua respiração acelerada fazia a cintura subir e descer lentamente, enquanto deixava escapar mais alguns gemidos. George olhou longamente o corpo jovem ao lado do seu, descendo dos cabelos até os pés, admirando cada curva, cada reentrância, cada poro e cada pêlo. Melissa era uma mulher linda. Poderia sim ser sua filha. Esta idéia geralmente deixava George em pânico.
Olhe aqui senhor George Wesley, não quero que você faça isso nunca mais, ouviu bem ? Eu não sou nenhum objeto para você me usar quando você bem entende, fique sabendo. O que eu faço nas ruas é para sobrevivermos enquanto durar esta guerra. Não nasci puta, George Wesley, não sou e não serei sempre puta. Não me trate como puta nunca mais George. Esta me escutando, estou cansada de lhe dizer isto.
Por muito tempo, tudo que ela tentara foi fazer George Wesley entender que ela o amava. Parecia simples para ela que isto fosse visível, mas as tais forças do universo certamente não deixaram aquele inglês renitente perceber. O pensamento de George continuava a se afastar e continuou distante dela, embora ele a escutasse ao longe, como o ruído das bombas alemãs.
George Wesley, me escute bem; George Wesley. Não me basta atravessar a noite atrás de umas moedas e ainda tenho que chegar em casa e agüentar você debaixo de mim, sem conseguir nem gozar. Chega George Wesley, chega. Com guerra ou sem guerra, esta foi a última vez que o senhor me teve.
George virou-se lentamente em direção ao criado-mudo. Ficou durante algum tempo olhando para aquele móvel já desgastado e que não combinava com mais nada naquele quarto tão feio quanto a própria guerra. Lentamente seus pensamentos foram retornando à Tooley Street, ao apartamento, ao corpo e à voz de Melissa.
Moveu também lentamente o braço em direção ao criado-mudo, sobre o qual repousava uma edição de um ensaio chamado La Otra Muerte, de um jovem escritor argentino chamado Jorge Luís Borges, cujas histórias viviam repletas de espelhos e labirintos. Por alguns segundos imaginou que a sua vida de alguma forma se assemelhava ora a um labirinto, ora a um espelho. Um ampliando e confundindo constantemente o outro. Florence fora o labirinto e Melissa o seu espelho. Ou teria sido o contrário ? Não importava muito, já que os efeitos eram rigorosamente iguais: uma seqüência interminável e crescente de dúvidas, questões, ciúmes, orgasmos, insônia, comida mal feita, sexo descontrolado, calçadas, explosões, desprezo, carências, labaredas, whisky vagabundo, ansiedades e incertezas pairando como espadas sobre sua cabeça.
Da gaveta do criado-mudo George Wesley tirou um pequeno revolver calibre 22.
Seu olhar moveu-se algumas vezes entre a arma e o corpo de Melissa, pensando que ironicamente ambos estavam em suas mãos. Naquele momento ele era o dono e senhor absoluto daquele corpo jovem, quente e sedutor, daquele orgasmo encenado, daquele metal frio, milenar e destruidor, daquela vida repetida.
Com um único tiro na nuca, George encerrou a longa e derradeira declaração feita por Melissa Vatumbí Nash.
Quase no mesmo instante um violento estrondo sacudiu a Tooley Street e o prédio, atingidos por uma bomba alemã. Parte do teto caiu sobre eles, atingindo em cheio o corpo já sem vida de Melissa e esmagando-o contra a cama. O lado onde George se encontrava, pálido e trêmulo, com o revolver na mão, permaneceu intacto, como se nada houvesse ocorrido, apenas coberto por uma chuva de poeira e areia.
Um leve sorriso lentamente surgiu no rosto de George, como se o tempo novamente voltasse a ser só seu.