Cultura

VII CAPÍTULO DA NOVELA "UM TÁXI PARA O ALBANY", POR MARCO GAVAZZA

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| 27/06/2009 às 21:59
A sedutora Melissa e as bombas caindo sobre Londres na II Grande Guerra
Foto: Ilustração MG

CAP. 7

JULHO, 1945, TOOLEY STREET, SOUTHWARK, LONDRES


O que você esperava ? Que o Primeiro Ministro houvesse saído comigo e me trouxesse de volta para casa numa limousine com batedores e a bolsa cheia de libras de ouro ? Isso aí foi tudo que consegui.

   

Melissa estava visivelmente irritada naquela madrugada de sábado. Nem mesmo a juventude ainda radiante dos seus 21 foi suficiente para que ela conseguisse algum dinheiro pelas ruas de Londres, desde o anoitecer da sexta-feira, mais uma sexta-feira em que sempre surgia aquela expectativa por uma surpresa que nunca acontecia.  Ela atirou duas ou três cédulas e mais algumas moedas ao chão  com uma mistura de raiva e culpa.

   

Southwark pode ter sido um paraíso para as putas de Londres há muito tempo atrás. Hoje, com o resto desta guerra intolerável ainda nas nossas cabeças e sem dinheiro nos bolsos, isto aqui é um inferno deserto. Tudo é escombros, até as putas parecem escombros humanos. Parece que até eu estou virando um escombro. Deus me perdoe.

   

George escutava em silêncio. Nunca sabia como agir com Melissa quando ela parecia esperar uma atitude sua. Talvez a quantidade de espaços que ela ocupara em sua vida tornasse tão difícil a tarefa de entendê-la e poder raciocinar claramente.

  

Depois daquela tarde já distante e jamais explicada em que  ela chegara até sua  casa, Melissa tornou-se sua amante e um ou dois anos em seguida, quando a maldita guerra deixou a todos sem ter sequer o que comer,  passou a prostituir-se para que ambos pudessem sobreviver. Assim um sentimento de cumplicidade desenvolvera-se entre os dois, uma sensação nova para George. Como se um sentisse necessidade de recompensar o outro por algo que não sabiam exatamente o que era, por preferirem não pensar no assunto. Porque se buscassem as verdadeiras razões para que estivessem juntos, entrariam num emaranhados de sentimentos do qual dificilmente sairiam ilesos.

  

George inconscientemente projetava em Melissa um passado não resolvido, em que Florence Dayse ressoava ora como uma dádiva, ora como uma praga. De certa  forma a situação dava-lhe a ilusão  de ter resolvido o seu ciclo frágil. Não podia também controlar uma impressão sufocada de que Melissa poderia ter sido sua filha. George acreditava ter deixado que Melissa ficasse morando com ele no Albany, um pouco por saudade de Florence, um pouco por necessidade de companhia, muito pelo sexo alucinado de que Melissa era capaz.

  

Melissa por sua vez achava que se apegara a George como uma referência de vida e uma segurança. Nunca mais souberam de Florence Dayse, sequer sabiam se ela ainda continuava em Londres. Depois que entregara aquele bilhete a Melissa mandando-a procurar George, desapareceu completamente.

   

George cuidava dela, fazia sexo agora com uma certa competência e a protegia. Seguiram assim durante algum tempo, numa espécie de felicidade fora de hora, enquanto lá fora as ruínas se acumulavam e a guerra parecia finalmente estar chegando ao fim.  Os negócios estavam praticamente acabados e um dia algum tempo atrás George fora obrigado a enfrentar o inevitável fato a que vinha se recusando sistematicamente: estava falido.


Entregou o apartamento do Albany e foram morar em Southwark, coincidência ou não a duas quadras de onde morara Florence Dayse. Melissa seguiu o mesmo destino da mãe, mas como a guerra tornara tudo mais áspero, mais  cruel, não podia se dar ao luxo de ter clientes de fino trato e freqüentar hotéis, restaurantes ou endereços elegantes.

  

Esperava que aparecesse algum homem interessado em seus carinhos pelas ruas de Londres e voltava para casa de madrugada com algumas libras nos bolsos do pesado casaco que escondia seu corpo maravilhoso e que resistia aos quase cotidianos embates do sexo mercantil. George culpava a guerra por tudo aquilo e jurava que logo iria retornar ao Albany, acabar com aquela forma de sobreviver e cuidar bem de Melissa para sempre.


Mais uma vez se repetia o processo das verdades aparentes. Melissa era para George amante, mulher, filha e prostituta, enquanto George era para Melissa marido, pai, protetor e cafetão. Na verdade eram dois desconhecidos, empurrados uns para o outro pela guerra, pela solidão e por Florence Dayse Vatumbí Nash. Por onde andaria ela ? Será que fugira para os Estados Unidos com aqueles dois imbecis que George jamais conseguira esquecer ? 

   

Que merda esta cidade, esta guerra, esta  vida. Aliás, mesmo que fosse um paraíso, não agüento mais trepar todas as noites com qualquer espécie de maluco que me aparecer pela frente. Você parece não se importar nem um pouco com isso, só se preocupa com a quantidade de dinheiro que eu consigo. Você nem imagina que tipo de homem ainda consegue andar pelas ruas durante a noite procurando uma prostituta. O senhor, George Wesley, nem imagina o que eu sou obrigada a fazer para deixar esses miseráveis satisfeitos e pagarem sem fazer escândalos ou me ameaçarem. Você ainda lembra que gostava de trepar comigo senhor George Wesley ? E por acaso lembra como era trepar comigo George Wesley? Você gosta de mim George Wesley?

   

George lembrava, claro que lembrava. Impossível esquecer a quantidade de noites em que a cama do apartamento no Albany se transformava num barco atemporal, no qual embarcava para confundir vida e sonho, livros e moedas, letra e música, realidade e prazer, juventude e falta de  ar, guerra e paz, timidez e  lascividade, Hitler e Churchill, Melissa e Florence. 

  

Isto fora logo após Melissa ter surgido no Albany, sem qualquer aviso prévio e colocado uma imensa interrogação em sua vida.  George nunca conseguiu fazer seu cérebro responder às inquietantes perguntas e enquanto respostas não surgiam, Melissa foi ficando, a intimidade se estabelecendo, o provisório tornando-se definitivo como fatalmente acontece, até que a guerra a empurrou para as calçadas e a ele para fora do Albany.


No início Melissa pareceu aceitar com naturalidade a situação. Ela tinha uma forma muito sua de ver a prostituição, assim como sua mãe também tivera e encarava o fato acima de tudo com dignidade e bom gosto, coisas entretanto difíceis de se manter com bombas explodindo sobre a cabeça, um barulho enervante de aviões em rasantes monótonos e incêndios em cada esquina.  Gostar dela?  Melissa significava a única realidasde aceitável para ele. Ele deveria amá-la e talvez o fizesse, mas como pensar em sentimentos quando o mundo parece desmoronar e está mesmo desmoronando?

  

Será que você sempre me viu como uma puta ? Pois saiba que eu procurei você porque foi vontade de minha mãe, escrita numa carta que ela me fez antes de desaparecer. Saiba também senhor George Wesley, que antes de você eu só tive um homem, que foi para a linha de frente desta guerra idiota e eu sequer sei se está vivo. Um só homem,  ouviu  bem ? Um homem que antes  mesmo de me ensinar a  trepar de verdade já estava nas trincheiras sendo atacado por  estes alemães alucinados. Quando eu bati  na sua  porta George  Wesley, era quase virgem. Tudo o que aprendi e hoje está à venda, foi você que me ensinou. Isso mesmo. Você, George Wesley.


Na verdade, pensava George, o que ela havia aprendido foi com Florence Dayse, sua própria mãe. Ele havia sido apenas um agente transmissor dos conhecimentos dela sobre a arte de amar e com quem --ele sim- aprendera tudo e que  agora era  pouco diante  do  que Melissa sabia.  Ele fora na verdade uma ponte entre Florence e Melissa, que a genética se incumbiu de concluir com perfeição. Não fossem aqueles alemães idiotas e ela estaria provocando admiração nos mais finos salões de Londres e fadiga em seus mais nobres cavalheiros. Um único homem, imagine só.


Claro que Melissa não podia ver nada sob este ângulo. O jogo das verdades aparentes possui este lado cruel, que é o da impossibilidade das verdades se enfrentarem até uma conclusão. Elas permanecem verdades para cada um dos envolvidos e assim, aparentes em sua essência, indefinidamente. Melissa sentia-se resultado da convivência com George, após a decisão de sua mãe de mandá-la até ele.

  

George às vezes sentia que Melissa era apenas a reencarnação de uma pessoa viva  -Florence Dayse-  para ser mais exato, enviada por um conselho deliberativo de demônios disposto a transformar sua vida num inferno representado pelo eterno questionar-se. Mais uma vez o jogo das verdades aparentes fazia com que ambos estivessem certos e errados.

  

Além disso, fique o senhor logo sabendo, quando esta guerra idiota acabar, eu vou arrumar um emprego, George Wesley, um emprego decente, ouviu bem ? Não pense que vou continuar por aí pelas calçadas enquanto o senhor se lamenta da vida e morre de saudades daquele Albany, do Veronica's sei lá o que mais. Vou ter um emprego normal, esquecer a quantidade de vezes que tive de agüentar um bêbado em cima de mim. E se o senhor quiser continuar trepando comigo, saiba também que não vou ficar semanas esperando por isso não. Ainda gosto muito de trepar com você, de ser tratada com carinho. Trate de sair deste buraco e viver, ouviu bem ? Viver, George Wesley. 

  

Viver há muito passara a ter um significado abstrato para George Wesley. Ele já não sabia muito bem se viver era trabalhar e seguir a rotina, se era atravessar um inferno com Florence Dayse e em seguida sua filha, se era morar no Albany e comer em bons restaurantes ou morar na Tooley Street e como  um cafetão depender das noites de Melissa para garantir o dia seguinte.


George olhou para Melissa que se despia no meio da sala e percorreu mais uma vez com os olhos insaciados o corpo ainda jovem. O tempo, a guerra e infinitas mãos masculinas já deixavam suas marcas, mas Melissa ainda era uma garota extremamente sedutora.  George estava indeciso entre a vontade  de acalmá-la tomando-a ao colo como uma criança  e a de deitar sobre aquele pecado que não parava de falar, fazendo-a calar-se com seus lábios. 


Porque me tornei tão hesitante?


Melissa virou-se para ele com a blusa puxada para cima revelando os seios quase morenos e cobrindo-lhe a cabeça.


Você falou alguma coisa George?