Cultura

CARTA DE AMOR AOS MINEIROS, POR DOM WALMOR OLIVEIRA DE AZEVEDO

Dom Walmor é baiano de Cocos e arcebispo de Belo Horizonte
| 24/06/2009 às 14:15
Dom Walmor, arcebispo de Belo Horizonte, recebe a visita do governador Aécio Neves
Foto: Arquivo
 

Há cinco anos, mais uma vez, vindo da Bahia, cheguei em Minas. Era o ano de 2004! Na primeira vez em que cheguei a Minas, vindo também da Bahia, cheguei novo, adolescente, para receber, para aprender jeito de ser. Cresci no jeito de ser. No jeito de ser que aprendi, acalentei sonhos, amei as montanhas e apaixonei-me pelo que não era. Tornei-me o que não era de nascença, mas nascido por amor.
 
E por amor, amor mais forte do que tradição, fiz de tudo para me ofertar, ajudando a edificar, crescer e florescer. Entre aprender ser e ofertar sendo o que aprendi a ser, se passaram trinta anos. Fui, de novo, à Bahia. E voltei a Minas, mais uma vez. Uma volta por amorosa obediência missionária. Com alegria, venho fecundando o compromisso de desdobrar-me em ofertas para fazer a Igreja crescer, e por este crescimento servir à vida de todos, anunciando a Boa Nova do Reino.


No dia em que cheguei, brotando sincera e espontaneamente do coração, exclamei: saí de casa, e chego em casa. É privilégio ter casas como Minas e Bahia. Mais do que casas, o privilégio se deve a estas alavancas que sustentam e definem muito, quase tudo da brasilidade.

O jeito de ser mineiro não foi aprendido com dificuldades. Aprendi com o coração. Com o coração é possível aprender tudo de bom, mesmo quando se chega lá um pouco depois de ter começado a vida. Aliás, com o coração é possível aprender tudo. Sem a ajuda do coração não se consegue este tudo, não reservado a um lugar, mas a um jeito de ser.


A aprendizagem do jeito de ser mineiro, para quem vem do jeito de ser baiano, é mais fácil do que se imagina, quando vale não as linhas imaginárias de uma territorialidade política. Quando vale, de verdade, um jeito de ser. Ser sertanejo, como descreve Guimarães Rosa, é mais do que um lugar. O cerrado não é apenas um lugar. A riqueza do seu bioma arquiteta uma alma. Minas é 50% cerrado. A Bahia onde nasci está nos confins deste cerrado que define o que Minas é. E a define por um jeito de ser.

Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas, descreve esta alma que ultrapassa o imaginário político definido para se dizer mineiro ou baiano: "Sesfrêdo, me conta, me fala nesse acontecer... '_ nem bem cem braças andadas eu já pedia a ele. Era como se eu tivesse de caçar emprestada uma sombra de um amor. "E você não volta para lá, Sesfrêdo? Você agüenta o existir? - perguntei. "Guardo isso para às vezes ter saudade. Berimbau! Saudade só".
 
Esta saudade é aquela que descasca as árvores do cerrado. Ainda que permanecendo tortas, no seu jeito de ser, continuam, sem desistir, no seu caminho e na sua missão. O cerrado ensina à alma que pode descascar, até enverga, mas não quebra. Um jeito de ser é uma alma.


Sertanejo do cerrado é, sobretudo, alma que sustenta jeito de ser. É o jeito de ser da minha nascença, na Bahia, é o jeito do ser mineiro que aprendi. O mineiro que "escuta, espia, indaga, protela, sorri, escapole, se retarda, faz véspera, tempera, cala a boca, matura, engabela, se prepara e no fim exclama: Nossa Senhora", segundo Guimarães Rosa, tem o pé no cerrado.

O mesmo cerrado que se estende pela Bahia até lá onde eu nasci. Embora eu goste de dizer sempre o que faço, jamais finjo não saber o que sei, falo bastante apesar de escutar muito; não gosto de fazer-me de bobo. Não vendo queijos e não possuo bancos, ando por todo canto, entrando no escuro e pisando no molhado; estico conversas com estranhos, arrisco sempre confiante e me importa mais o pássaro voando, longe de não ser do jeito de ser mineiro, no reverso da alma, lembrando Guimarães Rosa, sou mineiro porque gosto muito, o próprio da alma do sertanejo: gosto de simplicidade e pureza, humildade e modéstia, coragem e bravura, fidalguia e elegância.
 
Gosto de ver o nascer do sol e o brilhar da lua, ouvir os cantar dos pássaros e o mugir do gado, sentir o despertar do tempo e o amanhecer da vida. Sou religioso e conservador, sempre amei a prática das letras e das artes, com a negaça peculiar de sertanejo, mineiro e baiano, com gosto pela poesia e pela literatura, participante de política e amante da liberdade, contemplando as montanhas e cultivando a vida interior para sempre ser gente.


O título de cidadão honorário de Minas Gerais, guardado desde 2004, recebido em 14 de maio de 2009, assim foi por jeito mineiro de ser só arriscando com a chegada da certeza. Esta certeza é um amor por Minas, ainda mais entranhado, comprovado por gestos e pela audácia das ofertas diárias. Assim, sendo baiano sou mineiro também. Agradecido a Deus pelo dom de duas riquezas. Não é um orgulho. Orgulho incha o coração e pode obscurecer a visão.

É uma alegria emoldurada por honra. Alegria alarga o coração. Coração alargado é sempre generoso e solidário. Aprendi, por dádiva de Deus e percursos desta história que sou mineiro e baiano, bem definido num verso de Fernando Pessoa: "Segue teu caminho, rega as tuas plantas, ama as tuas rosas. O resto é sombra de árvores alheias".