Cultura

E QUEM RESGATA A IMAGEM DA AIR FRANCE?, POR MARCO GAVAZZA

Para contato gavazza@mgsbrasil.com
| 16/06/2009 às 23:57
A marca da Air France destroçada e sendo içada do mar tenebroso, o Atlântico
Foto: Div
 

O que acontece com a imagem institucional de uma empresa, quando é divulgada para o mundo inteiro, através de todos os meios possíveis de comunicação,  a imagem de sua logomarca  ou o design inconfundível de sua identidade, sendo retirada do fundo do Oceano Atlântico, após deixar lá embaixo 228 vidas? 


Antes de tentar responder vou  contar um fato surpreendente a respeito desta questão do impacto negativo sobre marcas poderosas. Aliás, acho que vou acabar virando um contador de histórias neste espaço; mas vamos lá.


Por volta de 1980,  a água mineral Minalba era líder de mercado em São Paulo.  A  marca pertencia ao Grupo Nestlé mas seu Diretor Executivo entendia que isso não precisava ser usado pela Minalba, pois não sendo o produto um derivado lácteo, deveria ter vida própria. Assim nem o rótulo do produto levava a marca Nestlé nem esta aparecia em sua comunicação. O grande público desconhecia a ascendência da Minalba. 


Logo no início de 81 a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo determinou uma análise das águas minerais existentes no mercado e a Minalba apareceu na lista das contaminadas. Entre outras bactérias mais ou menos irrelevantes,  estava a conhecidíssima e quase celebridade coliforme fecalis.  Acho que não há um único brasileiro que não tenha certa intimidade com esta criatura, pois que seu nome soa familiar a todos e é fácil de memorizar já que possui uma associação de imagens bastante desagradável.


As vendas da Minalba despencaram.  Após incontáveis reuniões de emergência entre o board da Nestlé, o marketing da Minalba e a agência de propaganda,  tomou-se uma decisão e no mesmo ritmo de emergência foi para a mídia uma nova campanha publicitária da Minalba.  Campanha normal, falando de refrescância,  bem estar etc. e passando o mais distante possível do tema saúde.  Só uma novidade: todas as peças levavam a assinatura Qualidade Nestlé.


Imediatamente a curva de venda da Minalba apontou pra cima e chegou a ultrapassar os patamares habituais anteriores à denúncia. Ou seja, quando o confronto deixou de ser  Prefeitura x Minalba e passou a ser Prefeitura x Nestlé,  levou a melhor a Nestlé.  A imagem de qualidade da marca suíça era mais forte que a credibilidade da Secretaria de Saúde.  Resumindo, quando a briga virou Brasil x Suíça a opinião pública deu por vencida a pátria amada.


Voltando ao vôo 447: é bem mais complicado.  Em vez de diarréias, verminoses e coisas similares que foram momentaneamente atreladas à marca Minalba, à marca francesa Air France atrela-se a morte de 228 seres humanos.  E aí? Deixar que a responsabilidade fique nas mãos do fabricante do Airbus não adianta muito, pois todo mundo sabe que esta também é uma marca francesa.  Falha humana? Bem, piloto e co-pilotos eram franceses e com qualificação endossada pela Air France.

Como o avião desapareceu no meio do caminho, numa zona cega, não dá pra desconfiar do controle de vôos nem do Brasil -de onde ele já havia saído- nem da Guiné, que ele nunca alcançou. 


A culpa por enquanto está sendo empurrada para o sistema fly by wire e para a natureza.  O inventor do sistema que entrega uma aeronave ao controle dos computadores já disse que ele è  à prova de pilotos burros.  Quase foi linchado. Quanto à natureza, ainda não se manifestou oficialmente e segue fazendo neve aqui, chuva ali, sol acolá, furacões mais além. Não importa.  Nos interessa aqui o impacto do evento fatídico sobre a imagem de marca da Air France.  Por muito menos -atrasos, aterrissagens meio brabas, perda constante de bagagens- a brasileira e extinta Vasp acumulou uma imagem negativa extremamente pesada. 


Mas a Air France  é símbolo e orgulho nacional da França e o próprio Presidente  francês foi às ruas  para  se unir à dor e ao pranto dos parentes e amigos daqueles que embarcaram no Rio sem destino a Paris.  O mundo inteiro ofereceu ajuda para as buscas de corpos e destroços.  A mídia global abriu total espaço para a tragédia, sempre deixando claro que voar é o meio de transporte mais seguro que existe.  Quadros, estatísticas e amostragens provam que a chance de morrer num desastre de avião é igual a de um raio cair na nossa cabeça; o que nos leva à conclusão que naquele exato momento 228 raios combinaram entre si de cair sobre aquelas pobres cabeças, ao mesmo tempo. Pilotos sempre exaustos, manutenção incompleta,  rotas absurdas para economizar combustível,  zonas cegas aos radares, excesso de decolagens,  conflitos de interesses, nada disso recebe destaque.


A imensa quantidade de vidas perdidas -pior ainda, sem se saber onde e como- gera uma comoção muito maior que o questionamento de responsabilidades.  Quem errou fica para depois. Importante agora é consolar os que ficaram em terra, encontrar o máximo de corpos no Atlântico Sul,  pagar as indenizações devidas rapidamente, declarar que as causas do acidente serão esclarecidas o mais breve possível e a qualquer custo.  Porque a dor maior é da Air France e da  França.


Como voar é bem mais complicado que beber um copo d'água e existe um índice bastante elevado de gente com pânico de entrar em qualquer coisa que saia do chão,  é fácil considerar uma "fatalidade"  o que aconteceu e que esta fatalidade está implícita na própria existência do avião.  Algo vagamente parecido com morrer em combate para quem vai à guerra.  Quem perdeu um pai, um irmão, a mulher, um filho, um amigo, acaba se conformando com o destino.  Foi Deus quem quis.


Quem não tem medo de avião continuará tranqüilamente freqüentando check ins e quem tem medo continuará heroicamente sem pisar os pés num deles.


A vida é assim mesmo e segue em frente. Se a icônica Air France  tratar com um carinho especial -e talvez um serviço de bordo extra- também os passageiros do período imediatamente pós-fatalidade, sabem o que acontecerá à sua imagem corporativa?  Nada.  Uma marca bem construída não some no ar.  Vidas, sim.