Cultura

V CAPÍTULO DA NOVELA "UM TÁXI PARA O ALBANY", POR MARCO GAVAZZA

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| 14/06/2009 às 00:28
Quatro de George no Albany onde aconteceu encontro com Melissa
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CAP. 5

SETEMBRO, 1944, WEST END, LONDRES


No  outono de 1944 a guerra já havia criado e parecia fazer parte de uma nova rotina na vida de George Wesley. Raramente ia até sua loja, que escapara milagrosamente até então de todas as bombas que despencavam sobre Londres. Dedicava-se a catalogar seus livros, tarefa que nunca encontrara tempo para fazer antes e a ler aqueles seus preferidos. Maldita guerra. É verdade que com Churchill no poder as coisas melhoraram um pouco. Ao menos havia a esperança de que aquele inferno estava próximo do fim.

   

Sangue, suor e lágrimas não eram exatamente o que George esperava, à aquela altura da vida. A vontade do Senhor por vezes é inaceitável, mas é a vontade do Senhor,  pensava  ele.

  

O racionamento de alimentos tornara-se extremamente rígido, o que levava George vez por outra a sentir saudade daquele prato de fígado de bezerro com beterrabas que odiara naquela terrível noite em saíra para jantar nos últimos anos.  O pensamento do prato de cor indefinida entretanto sempre lhe trazia junto a lembrança de Florence  e então George mudava rapidamente a direção dos seus pensamentos, buscando outro refúgio para suas idéias. Florence não mais aparecera desde aquela noite.

   

George durante muitos meses pensou nela. Primeiro com raiva, depois com preocupação, depois com saudade e finalmente mais uma vez com raiva, criando um ciclo que se repetiu até quando sua alma se percebeu extenuada. Aí então George começou a não mais pensar nela. Um dia folheava um dos seus livros e lá encontrou num poema de Byron a explicação perfeita: "chega um momento em que o coração precisa tomar fôlego e o amor, descansar."

   

Era isso. Certos sentimentos possuem esta capacidade de mudar lentamente, como se o passar do tempo desse aos fatos que os provocaram nuances diferentes. A visão de Florence com aqueles americanos idiotas deixara George enfurecido e este furor permaneceu durante as primeiras semanas sem ver Florence. Deve estar trepando com aqueles dois bonecos em todas as ruínas desta guerra idiota. O tempo seguiu em frente e George um dia percebeu-se preocupado.

Que teria acontecido a Florence ? Estaria em segurança ou aqueles americanos a teriam metido em alguma encrenca ?  Era forçado a reconhecer que não a esquecera.

   

Mas, George acreditava fielmente no que lhe dizia seu pai quando ele era criança: más notícias sempre chegam logo. Isto tirou do coração de George a tensão e deixou que lá se instalasse a sensação desconfortável de perda  e de saudade. Desta vez, definitiva. Florence.  Porque, Florence ? Você bem que podia aparecer por aquela porta.

   

Florence não apareceu por aquela porta ou por qualquer outra diante da qual George se postara e lentamente ele sentiu voltar a raiva, mas agora, sem a presença dos americanos.

   

Era uma raiva exclusiva por Florence.

   

Puta, vagabunda, insensível. Como pude me envolver com uma criatura destas.


O tempo, a vida, o cansaço e Byron deveriam se incumbir de fazer George esquecer tudo aquilo e buscar a paz interior, mesmo que ao som de bombas despencando sobre sua cabeça. Assim ele pensava e fortemente desejava enquanto repousava em sua velha Bergère de couro vermelho, um livro aberto e esquecido sobre os joelhos, o olhar distante, atravessando a janela, a paisagem e a tarde que começava a se desfazer, sem se fixar em nada.


Três batidas seguidas na porta de mogno do 308 do Albany tiraram George de suas reflexões cíclicas e o fizeram andar lentamente em direção ao sons. Estava intrigado. Não esperava ninguém, ninguém o visitava sem avisar antes e o tempo não era exatamente o mais indicado para visitas, fossem elas informadas antes ou não. As batidas pareciam tímidas para representar perigo de algum nazista disfarçado. As dúvidas de George aumentaram ao abrir devagar uma fresta da porta e ver diante dele uma moça muito jovem e bonita. Uma combinação exótica entre pele morena e cabelos loiros davam-lhe um ar inquietante, mas seus olhos pareciam muito serenos.

  

George Wesley ?


Sim, ele era George Wesley, sem dúvida. E ela, quem era ?  A moça estendeu-lhe um envelope, onde estava escrito seu nome. George Wesley. Ele a convidou para entrar e mandou-a sentar-se enquanto abria o envelope. Não pode deixar de perceber o corpo perfeito da moça, delineado por um vestido da cor de champanhe e muito justo. George tirou do envelope um pequeno cartão e leu incrédulo: "Você deve estar precisando de companhia. Cuide de Melissa. Ela fará por você o que eu não fiz. Florence". 

  

Não era possível, mas era verdade.  Estava ali em suas mãos, com todas as letras.


De onde vem isso ? Você é Melissa ?


A voz de George tremia um pouco e a moça pareceu perceber isto, pois tratou de acalmá-lo.


Encontrei ontem em minha caixa de correio, com um bilhete e este endereço. Pedia para procurar o senhor.  Eu sou Melissa.


George guardou de volta o cartão no envelope, respirou fundo e caminhou novamente até a porta, abrindo-a desta vez completamente.


Se for só isso, obrigado, passe bem.


Melissa levantou-se sem saber o que dizer e saiu do apartamento em silêncio.


George fechou a porta também silenciosamente, foi para o quarto e lá se deitou. Por mais improvável que fosse, dormiu. Acordou com novas batidas na porta, levantou-se rapidamente, sem saber ao certo quanto tempo havia dormido e dirigiu-se irritado até a porta. Abriu-a com vigor e lá estava ela mais uma vez. Melissa. O olhar da moça desceu dos olhos de George até  o seu membro, que se erguia espontâneo por sob o robe. O fenômeno da ereção durante o sono passara despercebido para George que se apressara em ir abrir a porta. Ele sentiu o rubor invadir seu rosto. Melissa sorria levemente.


Voltei para ter certeza de que não precisava de nada. Parece que esperava por mim, não é mesmo ?


George não pode deixar de sorrir e afastar-se para ela entrar. Desde que Florence desaparecera, ele não tinha tido coragem de buscar outra companhia feminina. A guerra, a irritação, a decepção, a vida racionada, tudo contribuía para que ele permanecesse assim. Agora aquela linda garota estava ali diante dele, com um objetivo claramente definido. George deixou-se levar pela situação e minutos depois estavam na cama ainda desfeita.

   

Fez sexo com ela apressada e angustiadamente, como costuma acontecer depois que se fica muito tempo longe do corpo de uma mulher. Não conseguiu nem perceber que Melissa era uma artista do sexo, tal foi sua ansiedade. Chegou logo ao orgasmo e agora descansava enquanto pensava em tudo isso ao mesmo tempo. Não precisava se angustiar. Ela estava ali ao seu lado, nua em sua juventude e beleza. Bastava descansar um pouco, descobrir como aquela mulher maravilhosa surgira em sua cama, pensar calmamente no que fazer diante da possibilidade de uma nova companhia  e recomeçar com calma, aproveitando cada segundo da vida e cada centímetro do seu corpo, se decidisse suspender temporariamente a sua solidão preciosa.

   

Como você conheceu Florence ? 


A respiração entrecortada de George, que ainda se recuperava da explosão de desejo primário e instintivo, foi bruscamente interrompida.

   

Ela é minha mãe.


Por alguns segundos George imaginou o que ainda seria possível acontecer em sua vida como conseqüência daquela distante manhã de 1º de janeiro de 1940, quando abrira a porta, o coração e a vida para Florence Dayse Vatumbí Nash.