Cultura

II CAPÍTULO DA NOVELA "UM TÁXI PARA ALBANY", POR MARCO GAVAZZA

Tire cópia. Colecione.
| 24/05/2009 às 08:16
Veronica's Restaurant de Londres onde se ambienta o segundo capítulo
Foto: Arquivo

CAP. 2

ABRIL, 1942, CHELSEA, LONDRES


George Wesley contemplava pensativo o prato que repousava sobre a mesa à sua frente, no aconchegante salão do Veronica's, naquela noite nervosa de agosto de 1942. A guerra tornara-se muito intensa e Londres parecia atrair toda a atenção das nações envolvidas. Comer bem estava cada vez mais difícil. O ressecado e mínimo bife de fígado de bezerro, cercado por fatias de beterraba de uma cor vagamente situada entre o lilás difuso e o negro desbotado, era uma clara evidencia disto, representando apenas uma pálida lembrança  da festejada inovação gastronômica criada ali mesmo, anos antes. Ao seu lado, uma taça de vinho vagabundo tremia levemente sob o efeito dos bombardeios, como que confirmando todos os seus pensamentos. George olhava a carne magra e lhe vinha à mente a imagem das grossas coxas de Florence apertando a sua cintura. Estiveram juntos no dia anterior e ele não conseguia parar de pensar  nela. Onde estaria agora ? 


Em algum quarto de hotel da Londres estremecida pelos rasantes dos aviões da Luftwaffe, ela fazia alguém esquecer que estavam em guerra, misturando os tremores provocados pelas bombas com os que eram inevitáveis sobre o seu corpo. Certamente era isso que estaria acontecendo naquele instante. George não gostava disso. O que deveria ter sido apenas uma novidade na sua cama naqueles primeiros dias de 1940, tornara-se lentamente uma nuvem pairando eterna sobre ele e seus horizontes, antes claros e definidos como um risco na paisagem.


Preciso resolver isso e logo.


George pensara alto, atraindo olhares dos poucos ocupantes das mesas próximas.


Algum problema com a comida senhor?  


Claro que havia problema com a comida, mas George no momento estava mais preocupado com outro tipo de insatisfação: a da alma. E esta é muito difícil de ser resolvida por um garçom num restaurante quase vazio, ao som de bombas alemãs ou italianas, tanto fazia, eram barulhentas do mesmo jeito.


Merda de guerra. 


Tanto o garçom quanto as outras pessoas próximas acharam melhor cuidar de suas vidas e deixar em paz aquele homem visivelmente perturbado. Nem bem a paz voltara a reinar no restaurante em meio à guerra, outro fato agitou a noite. Usando um vestido longo de seda indiana, muito justo, com um vasto decote além de uma longa e generosa fenda lateral, Florence Dayse Vatumbí Nash acabara de entrar no recinto, seguida de dois cavalheiros de aparência difusa, usando blasers de cores diferentes das calças, sapatos bicolores, camisas escuras e gravatas berrantes. Seus cabelos eram ruivos ou loiros queimados e cortados muito curtos. Além  da incomum aparência, falavam um inglês muito diferente do que se escuta nas ruas de Londres, mostrando o mal que a travessia de um oceano  e a companhia de selvagens pode fazer com um idioma.


G‘nite.


Ninguém deu atenção a tão rudimentar saudação, desviando os olhares de volta para seus pratos e retomando o movimento dos talheres parados no ar.  Exceto George, que finalmente decidira levar à boca um pedaço do raquítico fígado de bezerro. Florence passou radiante ao lado da sua mesa, sem vê-lo, como se ali não estivesse presente nem o esquálido prato nem o gordo inglês que prendia a respiração  com um garfo suspenso perigosamente no espaço. Acomodaram-se todos numa mesa no canto do salão e seguiram a conversa animada que já estava iniciada ao entrarem no restaurante. George chamou imediatamente o garçom e pediu-lhe a conta.


Enquanto este ia e voltava com o troco imaginando como alguém poderia ser tão exigente com a comida em plena guerra, George já se levantara e pegava o seu casaco na chapelaria, saindo apressado para a noite. Um acordo tácito entre ele e Florence estabelecia que não deveriam se falar quando se encontrassem casualmente  e ela estivesse com clientes. George entendia o cuidado com a sensibilidade dos seus habituais amigos, mas não poderia aceitar isto diante de dois ianques idiotas, vestidos como se a guerra fosse uma brincadeira e Londres um palco. Ela poderia tê-lo cumprimentado sem que isso causasse qualquer constrangimento aos seus ridículos acompanhantes.


E por onde andaria Florence para  se envolver com aqueles americanos patéticos?  Havia perdido o cuidado com a própria reputação? 


George saiu do Veronica's irritadíssimo e caminhou lentamente pela calçada, respirando fundo para que seus batimentos cardíacos voltassem ao normal e seu pensamento parasse de girar alucinadamente. Posse. Sentimento profundo  de posse. Ciúme. Louco e descontrolado ciúme. Esta era a certeza que George tentava negar ao seu próprio  coração, embora soubesse que esta era a verdadeira e única razão de toda a sua angústia, da explosão de irritação que acabara de acontecer e ele felizmente soubera conter. Mas agora o ar frio da noite londrina permitia que ele respirasse melhor e deixasse correr o pensamento tão incomodo da aceitação inexplicável.


Como poderia ele sentir ciúme de uma prostituta? Porque este sentimento idiota se apodera de nós e embora todo o nosso consciente exiba razões lógicas e coerentes para afastá-lo, ele ignore solenemente nossa repulsa e se instale cômodo e largo em nosso coração ? George sentia ser o proprietário de Florence por direito de fidelidade unilateral e embora não admitisse a hipótese de tê-la sempre ao seu lado, achava absolutamente natural ela se manter reclusa e momentaneamente virgem, por todos os dias em que não fosse solicitada por ele. Era isso que o instinto dele dizia esperar embora fosse uma hipótese inconcebível racionalmente e pior ainda, inaceitável. Principalmente  para alguém como  ele, um cidadão britânico civilizado, não um ianque qualquer.


Quem era afinal Florence Dayse Vatumbí Nash para questionar-lhe a opção pela solidão ? Para tirá-lo da auto-suficiência que ele proclamara tantos anos antes, ao instalar-se no Albany, como se ali fora um reservado especial do universo, ao qual só tem acesso aqueles que prescindem do todos os outros seres da criação ?  George entendia que a convivência humana só deve se dar no plano da prática cotidiana de habitar o planeta. Comercializar coisas, tocar levemente a aba do chapéu ao cruzar com um conhecido, mandar cartões no Natal e nos aniversários, aplaudir discretamente os cantores de ópera e pedir licença para se retirar. Coisas assim.


No ambiente do pensamento, das reflexões, das perguntas e respostas, nenhum homem necessita de compartilhar presenças. Basta uma boa biblioteca, um lugar agradável e todos os segredos estão ao  alcance. Este pensamento e esta atitude não significavam que George se julgasse superior a ninguém, mas apenas achava que cada homem tem de encontrar a sua própria explicação para tudo aquilo que não tem explicação, assim como cada um tem a sua própria impressão digital e por maior quantidade de mãos que se possa apertar ou afagar, ela permanecerá para sempre a mesma e única. Por isso religiões, sociedades filosóficas, confrarias do pensamento e entidades semelhantes, se perpetuavam através dos milênios, sem que qualquer resposta capaz de satisfazer a todos  fosse fornecida por seus integrantes.


Pior ainda, sem que novas perguntas fossem feitas, o que significa contradizer completamente a evolução humana, por mais misteriosa, lenta e caótica que esta possa parecer. Se o homem evolui em direção a uma divindade, a uma energia mais pura, a uma dimensão menos densa ou a qualquer outro estágio do conhecimento, isto significa necessariamente que novas perguntas surgem diante dele. E que só ele, sozinho, pode perceber as novas perguntas e buscar as novas respostas, também sozinho, pois é aceitável se supor que a humanidade não evolui em blocos, em turmas, em bandos, exceto no que se refere à convivência dentro dela mesmo. O que levava George novamente ao ponto de partida para a sua opção pela solidão como pré-requisito ao  crescimento individual. 


As ruas desertas de Londres pareciam concordar com George e também aplaudir o seu raciocínio com grandes explosões que iluminavam o céu. Precisava fazer alguma coisa.

   

Droga de guerra, americanos filhos da puta, maldita Florence, Londres de merda.

   

No Veronica's Florence pousava a mão sobre a coxa do americano sentado ao seu lado direito e com um pé descalço roçava a perna do outro, que sentara à sua frente. Mas seu pensamento estava em George Wesley. Porque ele tinha que estar exatamente ali naquele momento? Se não podemos estar em todos os lugares ao mesmo tempo, deveríamos ao menos ter a capacidade de prudentemente prever lugares onde não deveríamos estar em determinados momentos. Seria mais simples viver assim. Florence jamais poderia explicar a George o que fazia ali com aqueles americanos idiotas, para que ele mudasse a absoluta certeza de que ela estava na ante-sala de uma orgia sexual com dois mariners famintos,  em plena guerra. 


Não havia a mais remota possibilidade de George acreditar que além de companhia feminina para senhores londrinos abastados, ela tornara-se também agente não-oficial do serviço secreto britânico de informações e que aqueles americanos tão exageradamente visíveis eram na verdade agentes secretos dos Estados Unidos seguindo pistas de agentes duplos ingleses, o que para ela era um verdadeiro presente.


Bastava estar por perto dos americanos e eles a levariam até o que ela também buscava.