Cultura

JORNALISMO EM TEMPOS DE CÓLERA NA DITADURA 64, POR ANTONIO JORGE MOURA

Antonio Jorge Moura é jornalista
| 23/05/2009 às 10:00
O então editor da Tribuna da Bahia, João Ubaldo Ribeiro foi depor na PF devido "A Coisa"
Foto: Arquivo
  A Tribuna da Bahia anunciou na primeira página o lançamento de suplemento de humor do cartunista Lage chamado "A Coisa". O anúncio em bico de pena estava junto à manchete principal da edição -"Geisel visita a Bahia", sobre a viagem do general-presidente a Salvador.

  Lá estava impressa a peça publicitária produzida pelo próprio Lage. Reproduzia personagem do cartunista puxando a corda da descarga de vaso sanitário dizendo "lá vem coisa aí". Para a redação da Tribuna era mais uma criação hilária de Lage e mais uma propaganda do suplemento que estava no forno, pronto para circular.

  Mas quem não gostou da estranha vizinhança editorial foram as chamadas "autoridades de segurança" do governo-militar da época. Para o coronel Luiz Arthur de Carvalho, superintendente da Polícia Federal, era mais do que uma mera propaganda de um suplemento literário, era, sim, uma provocação dos jornalistas de esquerda que infestavam a redação da Tribuna para provocar o regime militar.

   O escritor João Ubaldo Ribeiro, editor-chefe da TB, foi convocado - convidado, como diziam - para ir à sede da PF, localizada no atual Terminal Marítimo do Comércio, defronte do Mercado Modelo - antigo prédio da Alfândega -, prestar esclarecimentos.

  Voltou à redação preocupado porque saiu da PF com a certeza de que alguém da TB acabaria preso naqueles horas que antecediam a visita do presidente da República. O clima na redação era de pavor. Lá estavam empregados alguns jornalistas que foram presos políticos e a posição da maioria era claramente contra o regime militar e a favor do restabelecimento da democracia.

  Denílson, ex-preso político, naquele dia estava apavorado, porque tinha sido ele quem editara parte da primeira página antes de Ubaldo editar a manchete e as chamadas principais. Sub-editor da Editoria Internacional, lembrou as torturas que passou e tremeu só de pensar em ser preso novamente. Acabou pedindo a um dos poucos colegas que possuíam carro, pouco antes do fechamento do jornal, para levá-lo em casa, um apartamento no bairro de Brotas, em frente à saída do Acupe, porque poderia até ser preso se fosse desacompanhado, de ônibus para casa e, simplesmente, vir a "desaparecer", como se dizia na época as execuções por razões políticas. Só sobrar o cadáver para contar a história.

  Fez o percurso entre a rua Djalma Dutra e Brotas completamente tenso, só conseguia lembrar e falar das torturas. Entrou na residência olhando os lados para ver se haviam sido seguidos, fechou a porta e desapareceu dentro de casa. Desapareceu mesmo, literalmente. No dia seguinte não foi trabalhar e a notícia que circulou era de que tinha ido à Estação Rodoviária, onde funciona hoje o Horto Mercado das Sete Portas e uma loja da Ebal, comprou uma passagem de ônibus para Minas Gerais e sumiu.
 
  Largou emprego, sequer rescindiu contrato de trabalho, deixou mulher no apartamento de Brotas e sumiu. Se picou! Com medo de ser preso.

   Esse era o clima na imprensa baiana durante a época dura do regime militar pós-1964. Pouco ou nada se noticiava sobre política. O tema que mais atraía leitores e as atenções dos editores eram as denúncias de poluição industrial na região metropolitana de Salvador, que marcou o início da tomada de consciência ecológica, de defesa e respeito ao meio-ambiente entre nós.

  Chegou ao ponto de um empresário, conhecido dirigente de entidade empresarial da Bahia, numa roda de jornalistas e empresários, soltar o alerta ameaçador: "As autoridades de segurança já estão investigando o que existe por detrás dessa onda de denúncias de poluição".

  Diziam a boca pequena que ecologia era coisa de esquerdista, de comunista e opositor do regime. Em frente à TB um grupo de jornalistas estava sentado em torno de uma mesa e de algumas cervejas. Havia alguns botecos ao invés das atuais casas de peças de automóveis onde a turma bebericava após a jornada.

  Quando um deles anunciou: "Minhas fontes me informaram que vai ter lançamento de livro sobre a Guerrilha do Araguaia, com palestra de Elza Monerrat, do PCdoB, na Associação dos Funcionários Públicos, na Carlos Gomes. Um cara da Polícia Federal me disse que ela vai invadir o auditório e prender todo mundo que estiver lá".
 
  Alguns presentes decidiram ir ao lançamento para conferir e acompanhar os acontecimentos.

  Não deu outra. Agentes da PF invadiram o auditório aos gritos de intimidação - certamente temendo a reação de algum guerrilheiro - e todos os presentes acabaram presos, inclusive os jornalistas, no meio dos militantes do PCdoB e convidados para o evento. E só foram liberados depois que a turma do MDB, à frente o deputado federal Marcelo Cordeiro, então presidente regional do partido, e o presidente da associação, Archimedes Pedreira Franco, acamparam na porta da Associação.

   Não era para menos o medo entre os jornalistas. Circulava a história do jornalista mineiro Dalton Godinho, que chegou aqui em Salvador como ex-preso político pouco depois de ser libertado e deslanchava na profissão.

   Um dia ele viajou até o Rio de Janeiro para ser julgado em processo judicial-militar. Com esperança de chegar lá, não ser julgado à revelia e ser absorvido, porque dizia que nada existia contra ele. Foi condenado a três anos de prisão. Descontado o tempo em que passou preso ilegalmente, sem ter passado por julgamento, ainda ficou seis meses na cadeia política.

   A única compensação foi que a vida lhe deu, depois da cadeia, é que ele voltou à Bahia casado com uma amiga de infância que o reencontrou quando estava preso.

   Mas não se dissipam da memória os relatos de que passou mais de 60 dias preso no Rio de Janeiro sendo torturado diariamente, que não lhe permitiam tomar banho sequer, fazia as necessidades fisiológicas na cela, que jogavam água em seu corpo para potencializar os choques elétricos, que os torturadores disparavam aerosol de bom ar no corpo dele antes de começar mais uma sessão de tortura, que entrou no pau-de-arara com um vergalhão introduzido no ânus para que os choques elétricos fossem dados dentro dos intestinos e que sua cabeleira foi arrancada a mão pelos algozes.
 
   Faço outro relato que Dalton contou para que esse texto não fique tenso. Ele, ex-soldado do Exército, era militante armado e clandestino na Baixada Fluminense, e foi encontrar outro militante no centro do Rio de Janeiro. O local era uma rua movimentada e ficou acertado que ambos se encontrariam caminhando na calçada e continuariam andando lado a lado, disfarçando o "ponto" caso tivessem sido seguidos por agentes da polícia-política.

   Ele caminhou para um lado, caminhou para outro e nada. Então, resolveu entrar em um boteco, tipo antigo, de balcão comprido e umas mesas com cadeiras no fundo. Achou o local seguro e pediu uma "brahma", como se dizia na época independente de marca de cerveja. Ficou sentado numa mesa ao fundo bebericando devagarzinho, matando o tempo para ver se o companheiro de organização também não o encontrava na rua e o procurasse. Estava ali, com um revolver cano-longo na cintura e entre as pernas, quando um sujeito de paletó e gravata passou pela calçada. Olhou para dentro do boteco, continuou caminhando, mas deu dois passos para trás, entrando e seguindo em direção a ele.
 
  Dalton disse que se ajeitou na cadeira, meteu a mão na cintura, foi puxando o revolver devagarzinho, imaginando como iria abrir caminho após disparar quando o sujeito deu um tapa no balcão e exclamou: - Esse é mais um consumidor de Brahma, é a Brahma quem paga a cerveja dele. O sujeito, que quase foi fuzilado na luta armada contra a ditadura no Brasil, era um propagandista da Brahma contratado pela companhia para incentivar o consumo da marca de cerveja.

  No dia do anúncio da Lei de Anistia pelo presidente João Baptista Figueiredo, feita em cadeia de TV, o jornalista Victor Hugo Soares, chefe de redação da sucursal do Jornal do Brasil em Salvador, onde hoje funciona a Rádio Metrópole, no bairro de Pernambués, teve uma idéia genial. E designou um dos membros da sua equipe, em parceria com o fotografo Artur Ikissima, para assistir com os últimos presos políticos condenados que estavam na Penitenciária Lemos de Brito o anúncio de Figueiredo.

   A polêmica da época era se a Anistia iria incluir ou não os acusados dos chamados "crimes de sangue", nos casos em que, na luta político-militar contra o regime morreram pessoas. Por isso, era jornalisticamente importante, um "furo" de reportagem, assistir a reação de Theodomiro Romeiro ao anúncio.

   Afinal, Theodomiro era o único preso-político brasileiro condenado à morte em julgamento judicial-militar público. Além dele, estavam na Lemos de Brito o engenheiro Haroldo Lima, atual dirigente da Agência Nacional de Petróleo, dirigente do PCdoB, preso numa ofensiva do regime contra o Partido. E Paulino Cícero, militante do PCB, o "Partidão" pró-soviético antes da Queda do Muro de Berlim e da dissolução da União Soviética.

  "Olha a sombra do homem", comentou Theodomiro assistindo a transmissão da Anistia, apontando para o chefe da Casa Civil da Presidência, general Golbery do Couto e Silva, o homem da "abertura, lenta, gradual e segura", que acabou na democraria e que apareceu no vídeo.

   O anúncio rendeu matéria do JB, mas a surpresa veio dias depois: como estava fora da Anistia, Theodomiro Romeiro, que hoje é juiz federal em Recife, fugiu, sumiu da Lemos de Brito, e apareceu na França. O medo ficou com os jornalistas que foram assistir o anúncio da Anistia na Lemos de Brito para dar o "furo" de reportagem.

  Afinal, eles estavam entre as últimas pessoas que estiveram Theodomiro antes da fuga e poderiam entrar de gaiatos.